Os spoilers e símbolos de Coringa

Sim, este texto tem spoilers desde a primeira linha e se destina a quem já assistiu o filme. É uma análise de referências e tem um pouco de semiótica psicanalítica

No filme Coringa, o fato de Arthur Fleck imaginar, logo no início enquanto assiste TV com sua mãe, que Murray Franklin o deseja como filho é algo muito forte. Isso porque, mais tarde, quando ele mata o Frank no Talk Show, ao final, isso se torna um duplo simbolismo em matar o próprio pai, que poderia ou não ser Thomas Wayne. Acima de tudo, o que ele faz neste momento é matar a função paterna, tão responsável pela castração do sujeito.

“Ah, mas o sujeito é castrado pelo simbólico”, diria Lacan. Melhor ainda, não à toa o assassinado que é também o maior símbolo da entrada de Arthur no papel do Coringa de uma vez por todas é um apresentador de “Talk” show, um representante inequívoco do Grande Outro, da fala, do simbólico.

Robert De Niro

Ao matar Frank, o Coringa mata aquele que de verdade nunca existiu dentro de si mesmo: o Superego. O que quer dizer que ele entende as regras da sociedade, compreende o que seria certo ou errado, o que deveria e/ou poderia fazer, mas mesmo assim ignora e se sente bem ao executar exatamente coisas contrárias a isso. Percebe-se isso na espécie de “alívio” que o personagem tem a cada assassinato que comete.

sorriso triste Joker

Logo após as três primeiras mortes no trem, por exemplo, ele corre, como se fugisse de algo, como se estivesse sendo perseguido, ou mesmo com medo, talvez por conta de uma consciência do erro que cometeu tomando-o de assalto, mas, ao adentrar um banheiro público, o primeiro local em que se vê sozinho após o acontecido, seu ato é dançar, se deliciar com a sensação e fazer uma mesura, como se acabasse de apresentar um número de seu show.

Ao contrário do que possa parecer, o Coringa não é um psicótico, com delírios e o famoso inconsciente a céu aberto, sem distinguir realidade e imaginário, não! Ele é um psicopata desde o início, o qual o imaginário é forte o suficiente para contagiar até mesmo o espectador, mas ele não se perde na imaginação, sabe que não são reais, apesar de querê-los reais.

Joker correndo

A garota do apartamento ao lado, sua participação no talk show no início do filme e etc. Tudo isso não é delírio, é imaginação de alguém que está desesperado para se libertar de amarras, sofrendo por não conseguir aceitar quem é, com o que deseja e pensa.

A ruptura ao descobrir a provável loucura da mãe, sua adoção e tudo o mais, só o faz se sentir mais deslocado e desesperado ainda. Porém, ao se aceitar, se entregar a seus desejos de morte, nota-se um alívio imediato, um personagem mais leve, descontraído e que dá voz às reclamações de Arthur, que por tanto tempo se calou, em especial em situações em que nós nos incomodamos por ele, como um pequeno Harry Potter sendo maltratado em silêncio debaixo de uma escada.

As linguagens dele subindo o escadão da cidade depressivo e descendo feliz indicam um sentido invertido do da maioria dos filmes. Quando um personagem, caminhando sozinho, sobe escadas, cruza pontes ou atravessa algum tipo de “obstáculo” desse tipo, isso costuma indicar que ele está superando uma situação e partindo para um momento melhor.

O oposto também é verdade. Ao descer escadas, parar no meio de uma travessia de ponte e etc. o protagonista tende a demonstrar que está preso à situação e que tudo tende a piorar e se entristecer.

Joker dançando na escada

Nesse filme, no entanto, quando Arthur sobe as escadas, voltando de seu trabalho, em geral, ele está cabisbaixo, depressivo, claramente voltando a um círculo vicioso que odeia e para o qual não vê fim. Quando ele vai se “aliviando”, matando, aceitando quem é e lidando melhor com cada desejo homicida dentro de si, tomando atitudes concretas para o que antes era apenas um papel de vítima reprimida, enfim, toda essa trajetória culmina em sua descida no escadão, caminhando para o talk show. E ele desce feliz, cantando, dançando, sendo ele mesmo, se afundando em si.

Ou seja, todas às vezes em que ele “sobe” e tenta sair daquilo que ele é, do que o formou como pessoa: os maus tratos, agressões, medicamentos, uma vida sufocante e desgraçada, ele se sente péssimo. É quando se afunda nessa amargura, na violência, na estranheza e bizarrice de seus dias que ele pode se enxergar tal como é e passar a viver “melhor”.

Assim, descendo as escadas e se aprofundando em seu ser, ele escala para fora daquilo que dantes o aprisionava. É nele mesmo que a resposta já está posta há tempos: morte e violência com uma pitada de humor desgraçado e angustiante da vida. E é ali, onde todos veem fim, que o Coringa enxerga o início de si, e por que não dizer que finalmente vê a arte e a beleza de sua existência?

Em suas próprias palavras, é quando deixa de ver sua vida como um drama e passa a ver como comédia que as coisas “melhoram”.

Bem, não estou aqui a fazer nenhuma apologia ao personagem, nem mesmo dizer que assassinar pessoas é sinônimo de “melhorar” qualquer coisa. O que digo é puramente perante a visão do protagonista e sua descoberta sobre si.

Para além disso, é preciso dizer que a atuação de Joaquin Phoenix foi fantástica, tão boa que me surpreenderá se ele não entrar numa crise profunda, cometer algumas loucuras ou tentar se matar.

Joker pintado rindo

O filme em si é belo em suas cores, no seu crescente de filtros, de sons, mas principalmente pelos seus silêncios. Ao contrário de muitos filmes violentos que ficam no desagrado imediato e depois cortam para outro momento, o Coringa te dá tempo para pensar, para sentir a angústia de momentos estranhos, seja naquela situação social em que simplesmente não se sabe o que fazer, seja no pós violência em quase se saboreia a dúvida dos outros personagens quanto à atitude dele a seguir. Ele mesmo não sabe o que fará, essa é a beleza e a magia da coisa, se deixa levar.

Quem assiste se sente até mesmo estranho por rir em alguns desses momentos, mas é o que ele quer que você experimente, um pouco da loucura, do desconforto, do desagrado, da angústia que há reprimida e que mesmo assim não justifica tais atitudes. Explica mas não justifica. E mesmo depois de toda essa mistura de sensações, ainda te faz rir. Um pouco por ver graça na desgraça, um pouco para aliviar o nervoso, um pouco por enxergar um humor esquisito em tudo isso. Como a Divina Comédia de Dante, é chamar de engraçado aquilo que parece ser aos olhos de um outro alguém!

E aos seus olhos, o que parece?

O filme, por fim, justifica uma de minhas crenças pessoais bem estranhas que comprova que tudo o que precisa do título ou nome de “feliz”, “alegre” e etc. é na verdade triste, angustiante e causa desconforto ou a famosa vergonha alheia!

Assim é Coringa, cheio de máscaras… E ele só é ele mesmo quando coloca uma face que não é a sua, assim como um ator. 

Há muito o que se falar do filme e suas referências a outros personagens, coringas, filmes etc. Há os momentos de dança que remetem a Nicholson, as agressões que lembram Ledger, as imagens aprisionadas atrás de vidros, a ascensão, o mal estar como Taxi Driver… enfim, muita coisa que prefiro não citar, mas há uma última ainda.

Joker rindo de desespero

A sacada da risada dele ser doentia logo de cara é um recurso maravilhoso para o distanciar dos outros coringas anteriores (tirando o do Jared Leto, que foi tão ruim que nem precisa entrar na lista). Se os outros riam diante daquilo que não possuía graça alguma: como agressão, vandalismo, morte e etc. Esse coringa ri do desconforto desde o início. A própria risada é a doença e não um sintoma de algo além. O riso é de desespero e demora para se transformar no que a mãe adotiva dizia que ele era: feliz!

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Publicado por

RDS

Jornalista, escritor, metido a poeta e comediante. Adorador de filmes e livros, quem sabe um filósofo desocupado. Romântico incorrigível. Um menino que começou a ter barba. Filho de italianos, mas brasileiro. Emotivo, sarcástico e crítico, mas só às vezes.

Um comentário em “Os spoilers e símbolos de Coringa

  1. Esse filme tá demais. Vi com a Jojo pela segunda vez essa semana…

    Nessa segunda vez, reparei um pouco nas reações de desconforto do público perante as piores cenas. É simplesmente formidável. Rs

    Esse filme é incômodo e indigesto pra muita gente. A maioria das pessoas se sente totalmente desconfortável de falar (ou sequer pensar) nos seus próprios abusos pessoais, nas suas próprias histórias de tragédia, ações e consequências… Aonde tudo me levou? Quem eu sou agora e porquê? O que eu posso ter causado aos demais a minha volta?

    E essas questões vão te dando sutis socos no estômago conforme as cenas desconfortáveis vão piorando e o desabafo final vem à tona: “Ninguém faz questão de saber como é ser o outro cara”.

    Esse é o problema da sociedade individualizada, egoísta e extremista que nós vivemos: É sempre mais fácil julgar, rotular e estereotipar quem é diferente. Principalmente porque ao fazer isso, você ganha o apoio da massa supostamente “normal”. E todos nós buscamos desesperadamente uma aprovação coletiva.

    O curioso é que ninguém é “normal”, nem nunca vai ser. E todos nós temos um pequeno coringa dentro de nós mesmos, quer estejamos cientes disso ou não.

    Obrigado pela oportunidade de ver o filme sob outras óticas e filosofar sobre!

    Aquele abraço, gordo! Ótimo texto!

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