Renan De Simone

Bate-papo com Mario Sergio Cortella, filósofo e doutor em Educação (junho/2012)

Autor de livros como Não Nascemos Prontos! e Não Espere Pelo Epitáfio: Provocações Filosóficas (entre muitos outros), Mario Sergio Cortella é uma personalidade que desperta exatamente esta sensação quando se escuta suas reflexões: a de ser provocado filosoficamente, um convite ao pensar.

Filósofo, doutor em Educação pela PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) e professor na mesma entidade há mais de 35 anos, Cortella foi também Secretário Municipal de Educação em São Paulo no início da década de 90.

Nascido em Londrina, no norte do Paraná, em 1954, o professor está em São Paulo há 45 anos, onde atua também como palestrante a líderes corporativos.

Com uma visão histórica, críticas precisas e o bom humor costumeiro, Cortella é o personagem do Bate-papo do Sincodiv-SP Online deste mês e conta como podemos atuar para que a vida, apesar de curta, não seja pequena. Acompanhe.

Sincodiv-SP Online: Professor, você é filósofo, doutor em Educação e atua no ensino de Ética e Teologia. Conte um pouco sobre como descobriu tal vocação, como foram os primeiros passos de sua vida em busca desse “amor ao conhecimento”?

Mario Sergio Cortella: Sempre gostei bastante de ler e de estudar o que fosse, mas minha história contribuiu para o meu desenvolvimento no sentido acadêmico. Nasci em Londrina (PR), em 1954, e mudei com minha família para São Paulo quando tinha cerca de 13 anos. Até os meus 10 anos de idade, não havia televisão em minha casa, então minhas formas de entretenimento, além das típicas brincadeiras de criança, eram o rádio e a leitura.

Em 1960, com cerca de seis anos, tive uma intercorrência médica que me ajudou “imensamente”, fiquei com hepatite. Naquela época, o tratamento demorava cerca de quatro meses tempo no qual, sem TV, dediquei-me a participar de programas de rádio, respondendo a testes e provas que eram colocados aos participantes, e à leitura.

Num primeiro momento a família trouxe tudo o que havia de história em quadrinhos para eu ler, num segundo momento me presentearam com Monteiro Lobato e depois, já sem tantas opções, me trouxeram literatura adulta mesmo. Foi assim que conheci de Doistoévski a Machado de Assis.

Conto isso porque foi assim que tive despertado o interesse pelo tratado teórico intelectual e daí para a filosofia foi um passo.

Sincodiv-SP Online: Então desde criança pode-se dizer que soube o que queria dos estudos?

Mario Sergio Cortella: Sim, mas foi quando tinha 17 anos de idade que eu decidi que gostaria de estudar Filosofia, área em que dei os primeiros passos de minha carreira. Com 22 anos, já formado, fui convidado a dar aulas na PUC-SP, na qual estou há mais de 35 anos. Dentro desta entidade foi que constitui o complemento de minha formação em Filosofia e Ciências das Religiões.

Sincodiv-SP Online: O senhor não é teólogo, então?

Mario Sergio Cortella: Não, sou um cientista das religiões. A teologia pressupõe o exercício da fé, e minha atividade é o estudo das religiões em geral, especialmente da sua história, e dentro delas o valor ético que carregam. Não sou teólogo em stricto sensu (risos).

Sincodiv-SP Online: Há uma história curiosa de que você foi monge durante três anos de sua vida. De que ordem participava, quando isso aconteceu e que lições tirou deste período?

Mario Sergio Cortella: É verdade! Quando tinha meus 13/14 anos eu desejava ter uma experiência de religiosidade mais intensa, até porque sou de uma família de tradição católica, mas foi só quando eu tinha de 17 para 18 anos – assim que entrei na universidade – que fiz a escolha de ter a experiência de uma vida de clausura. Assim, ingressei num convento da ordem Carmelita dos Pés Descalços, que fica na cidade de São Paulo, no quilômetro 18,5 da rodovia Anhanguera.

Dentro da ordem Carmelita, na clausura do convento, fiquei por exatos três anos. Quando terminei o curso de filosofia (que tinha duração prevista de quatro anos, mas encerrei em três), percebi que não queria seguir carreira religiosa e, como minha experiência no campo da filosofia ali parecia completa, decidi deixar o convento e seguir carreira no campo do ensino, da educação, do debate e da ética.

O período em que lá estive, entretanto, foi de grande influência em minha vida. A experiência dentro de um monastério católico é de muita disciplina e regra, característica que carrego até hoje comigo. Este clima é muito positivo ao estudo e ao trabalho. Além disso, na época havia somente três brasileiros dentro do monastério, sendo que convivi com italianos, lituanos, espanhóis, etc. Essa vivência me foi importante não apenas pela questão linguística, mas em especial pela diferença de culturas e realidades, que muito me ensinou.

Sincodiv-SP Online: Quando você saiu do monastério foi que deu início a uma vida civil, por assim dizer?

Mario Sergio Cortella: Sim. Dois anos depois de deixar a ordem eu me casei pela primeira vez. União que me presenteou com meus dois filhos, hoje adultos. Mais tarde casei novamente, com a jornalista Janete Leão Ferraz Cortella, com quem estou há 27 anos e, apesar de não termos tido nenhum filho juntos, Pedro, que é filho de Janete e que tinha um ano e meio quando eu e ela nos casamos, é também meu filho. Inclusive nós dois até brincamos com isso. Quando alguém pergunta a ele ou a mim se o Pedro é meu “filho de sangue”, nós dizemos: fazemos transfusão há 27 anos (risos).

Sincodiv-SP Online: Mudando um pouco de assunto, você participa de palestras voltadas a diversos públicos, incluindo executivos e empreendedores. Como o senhor vê o mundo corporativo atualmente? Qual o maior problema desse universo?

Mario Sergio Cortella: O maior risco do mundo corporativo hoje é que ele retome o sentido original da palavra latina lucrum, da qual deriva a nossa atual “lucro”. Isso porque lucrum, em latim, significa engano, engodo, lograr alguém. Há 500 anos este termo mudou de sentido e passou a significar a remuneração justa ou correta de um produto vendido ou um serviço oferecido, mas até então significava lograr alguém, até mesmo abdicando da honestidade no processo.

Desta forma, o grande risco do mundo corporativo hoje, o grande desafio é fazer do lucro algo que seja higiênico, que não seja manchado pela patifaria, que tenha transparência.

Há, sim, a possibilidade de se ter uma lucratividade que seja decente e ela não pode ser ameaçada. Porém, o mercado internacional – e o Brasil dentro dele – admitiu, nos últimos dez anos, e agora começam a falar essa lógica, a ideia do “fazemos qualquer negócio”.

Essa atuação degrada a ideia de fazer negócio e é responsável, inclusive, pela crise que observamos nos últimos anos, desde 2008. Isso porque, em última instância, essa não é uma crise de crédito, mas sim uma crise de credibilidade. Caso fosse uma crise de crédito, o despejo de dinheiro no mercado – como foi feito – poderia resolvê-la, o que não aconteceu.

Ao colocar a lógica do “cada um por si e Deus contra todos”, o mundo corporativo acabou corroendo a sustentação de valor que teria de modificar o presente. Esse é o problema.

Sincodiv-SP Online: É preciso pensar uma ética para o negócio?

Mario Sergio Cortella: Exatamente. Ética dos negócios é um valor corporativo e não apenas uma coisa de fachada. Ética não é cosmética!

Hoje, com as ferramentas digitais, uma organização que utiliza a ética como cosmético, é desmascarada com mais facilidade, porque isso circula com uma velocidade inacreditável do que era possível até duas ou três décadas.

Sincodiv-SP Online: Hoje parece haver uma ditadura da tecnologia. Tudo tem de ser veloz, ágil, instantâneo. As ferramentas parecem ajudar as pessoas a ganharem tempo, mas a percepção da maioria é de termos cada vez menos e não mais tempo. Como o senhor enxerga esse fenômeno?

Mario Sergio Cortella: Isso é verdade e ocorre porque caímos numa armadilha muito perigosa, pois hoje confundimos velocidade com pressa.

Fazer apressadamente é diferente de fazer velozmente. Hoje, a ideia de velocidade não é de agilidade de fato, mas sim de pressa, por isso se tem cada vez mais uma restrição do tempo. Ou seja, temos uma ocupação contínua de qualquer tempo livre, o que leva a nos sentirmos sufocados.

Cronologicamente, há um sufoco na vida das pessoas, pois, dada a pressa com que tudo tem de ser feito, não sobra tempo.

Velocidade gera sobra de tempo, mas pressa restringe o tempo que se tem para alguma coisa, inclusive porque, geralmente, como a pressa leva ao equívoco, é preciso refazer e refazer as coisas com muita frequência para que tudo possa funcionar minimamente.

O uso da tecnologia em si não é uma questão ela mesma, mas a forma do uso hoje leva a uma “informatolatria” – uma adoração das plataformas digitais – que é extremamente perigosa porque ela não dá tempo para a reflexão, para o adensamento do pensamento. Não há a oportunidade de maturar algumas ideias e concepções e leva, portanto, a uma vida marcada pelo desespero da pressa em vez da paciência.

Importante colocar que paciência não é lerdeza. Ser paciente não é ser lerdo, mas, sim, entender que existe um tempo de maturação para conhecimentos, relacionamentos, aprendizados etc.

Tudo apressado leva a lugar nenhum… e em pouco tempo.

Sincodiv-SP Online: Qual é a importância do trabalho na sua visão?

Mario Sergio Cortella: Nós somos seres que não só vivemos, mas que construímos alguma coisa. Não apenas fruímos da natureza, mas elaboramos o nosso mundo, ou seja, criamos a cultura. O nome que se dá para a ferramenta humana de elaboração do mundo é trabalho.

Se ele tem essa importância, podemos dizer que é uma das formas pelas quais nos definimos como seres, uma das maneiras pelas quais somos cada vez mais nítidos e legítimos em nossa identidade, capacidade e convivência.

Entretanto, quando este trabalho escraviza a si mesmo ou a outra pessoa, ele degrada sua função original de criar o seu mundo e se torna indigno da nossa condição.

Nós vivemos numa sociedade em que há uma laborlatria, ou seja, a idolatria do emprego – e não do trabalho em si. Esta adoração faz com que o emprego, e não o trabalho, se torne a referência de vida das pessoas. Tanto que, quando vemos pessoas adoentadas, elas supõem uma melhora quando se veem aptas a voltarem aos seus empregos e não de voltarem a dançar, voltarem a conviver. Por isso essa laborlatria é perigosa.

Evidentemente que ninguém pode viver sem trabalhar, o que é verdade, mas viver para o trabalho é diferente de viver do trabalho. É preciso que se tenha um relacionamento com o coletivo onde possamos viver do nosso trabalho, isto é, no qual o trabalho seja nossa ferramenta, porque se vivemos para o trabalho, somos submetidos a ele, e isso sim leva a um estresse constante combinado com o sentimento de pressa do qual falamos.

Sincodiv-SP Online: O mundo corporativo parece selvagem. Pessoas focadas no lucro, na competitividade, profissionais ocupados apenas com o crescimento da carreira, etc. O senhor acredita que esse modelo deve perdurar?

Mario Sergio Cortella: Nós estamos perto de um esgotamento desse modelo, mas não perto de seu fim. Isso quer dizer que já não o suportamos mais mentalmente, ele nos faz sofrer. Por outro lado, ele ainda demonstra fôlego na medida em que os novos empreendedores iniciam seus negócios com uma disposição muito grande à luta.

Em outros tempos, o capitalismo foi chamado de selvagem, mas hoje está ainda mais. Isso porque, apesar de existirem novos direitos que supõem proteção e uma vida melhor, a selvageria aumentou na medida em que há uma forma de esvaimento da nossa condição de vida no dia a dia, e mesmo das condições da natureza dentro disso.

Poderíamos supor que a consciência de toda a problemática nos levaria a uma reorientação do modelo, mas não é o que ocorre, haja vista que a Rio+20, que trata de questões básicas à sobrevivência da vida, não chama a atenção de quase ninguém. Se nem esse tema importante chama a atenção do conjunto das populações e das organizações, isso é um sinal claro do risco que está em nosso horizonte.

Sincodiv-SP Online: A diferença entre gerações sempre foi um tema de debate na sociedade. Entretanto, as empresas cresceram e parecem abarcar mais universos atualmente, gerando conflito. Como você acredita que esses conflitos podem ser minimizados? O que é preciso para um bom convívio entre gerações?

Mario Sergio Cortella: Eu acredito que os conflitos podem ser minimizados, mas não devem ser anulados. O que devemos anular são os confrontos.

Entenda que o conflito entre gerações, nesse caso, é criativo e produz novas ideias, soluções e formas diferenciadas de visão. Isso porque o embate é criativo. O confronto é o perigo porque, ao contrário do conflito, ele supõe uma anulação da pessoa confrontada, o que se deseja é “apagar” a outra pessoa. O conflito embate ideias para encontrar um terceiro caminho.

Para criar uma harmonia na relação é necessário um gestor de muita capacidade e que saiba aproveitar a experiência e planejamento dos mais antigos com a empolgação e domínio de ferramentas dos mais jovens. O gestor e líder nesse caso funciona como o maestro de uma orquestra, ele não toca todos os instrumentos, mas conduz o todo para que cada um faça sua parte em harmonia com o resto.

Importante não confundir harmonia com monotonia. A monotonia não produz ideias, é um estado de letargia, ao passo que a harmonia é a capacidade de seguir um mesmo tom e ritmo, por assim dizer, mas fazendo algo bem próprio. Utilizando a comparação com uma orquestra, de nada vale se todos os instrumentos tiverem o mesmo som e nota ao mesmo tempo, é a diversidade na unidade, inserida no momento certo, que permite a beleza do todo. O gestor deve “concertar” as convivências, ou seja, fazer a harmonia dos vários instrumentos diferentes dentro de uma mesma música.

Sincodiv-SP Online: Muito se fala hoje de transformações enfrentadas pelo Homem, mas o mundo parece nunca ter “parado de mudar”, por assim dizer. Qual seria a diferença, então, das transformações que víamos antes daquelas que viemos vendo e sofrendo nas últimas décadas (ou século, se preferir)?

Mario Sergio Cortella: Isso depende muito do lugar do nosso planeta em que se vive. Algumas regiões mantêm uma certa perenidade em relação a comportamentos e conduta. Mas se nós pegarmos o modo ocidental, que é o nosso, e o das grandes metrópoles, que é o caso de São Paulo, a grande mudança foi o apressamento da vida, como falamos. Isto é, uma restrição do tempo de convivência, do tempo de ócio e uma diminuição das capacidades de relações afetivas. Acima de tudo, podemos destacar também uma mediação da vida pela tecnologia, ou seja, uma ferramenta se tornou, em muitos casos, senhor ou senhora da vida das pessoas.

Assim, em vez de utilizar a tecnologia como uma ferramenta de acesso, ela passou a ser um domínio sobre si mesma e sobre outro. Esta é a grande diferença do nosso tempo, um apressamento da vida e uma submissão às ferramentas.

Poderíamos dizer que a vida está muito menos violenta do que já foi em outro tempo histórico, mas se tornou distante na convivência. Embora sejamos mais gente em menos espaço, estamos cada vez mais distantes uns dos outros e isso é uma novidade em boa parte da história.

Esse modelo é um tanto egoísta e coloca o indivíduo como centro de tudo e não o coletivo ou o relacional e, logo, não é de se espantar que tenha-se hoje essa consumolatria, ou seja, a idolatria de um consumo, da posse material, mesmo que desnecessária. Isso passou a definir o sujeito em certa medida.

Sincodiv-SP Online: Não é de hoje que o Homem busca um sentido para a vida, seja pela arte, ciência, filosofia ou religião. Em sua visão, qual seria o significado da nossa existência, ou, ao menos, qual deveria ser nossa busca durante a vida?

Mario Sergio Cortella: Nós somos construtores de sentido, não temos um sentido já fechado dentro de nós. Toda a história humana é uma tentativa de fazer com que a vida de todos e de cada um não seja uma mera banalidade. Essa deve ser nossa busca. A espiritualidade, que não é religião – mas um sentimento de que existem forças agindo em nossas vidas que são maiores que nós -, ajuda nessa busca, mas nós criamos o nosso próprio sentido ao longo de nossas vidas.

Sincodiv-SP Online: Se não existem receitas para a vida, logo, as respostas não podem ser padronizadas, mas quais o senhor acredita que seriam, então, as perguntas certas que as pessoas devem se fazer para darem sentido à própria existência?

Mario Sergio Cortella: Só existe uma pergunta que deve ser feita que é “como podemos viver de modo que a vida seja curta, mas não seja pequena?”. Ou seja, como faço para ter uma vida que não seja banal, diminuta, superficial, insignificante; como faço para que a minha vida tenha importância para o conjunto da vida?

Essa, sim, é a única pergunta que tem de ser feita sempre. Todas as vezes que eu não me faço essa pergunta, eu posso viver de maneira automática, robótica, posso ser tolo. Sendo mortal, minha vida não precisa ser pequena. É a imortalidade pela obra.

Conteúdo produzido por Moraes Mahlmeister Comunicação. Entrevista realizada e redigida por Renan De Simone, editada por Juliana de Moraes. Publicado pelo site do Sincodiv-SP Online em junho de 2012.

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