Renan De Simone

Bate-papo com Clóvis de Barros Filho, filósofo e professor de ética na USP (junho/2016)

O trabalho domina nossa vida e refletir sobre o tema nos ajuda a entender o que fazemos e por que fazemos. Para nos guiar nessa missão, o professor Clóvis de Barros Filho é o personagem do nosso bate-papo desse mês. Ele conversou com o Sincodiv-SP Online e nos deu alguns caminhos que vão desde a origem da palavra “trabalho” (inicialmente designada para uma técnica de tortura) até o repensar do dia a dia nas relações trabalhistas entre empregados e empregadores, passando, obviamente, pelo tema Ética.

Clóvis é filósofo, bacharel em Direito e Jornalismo, mestre em Ciência Política e doutor em Ciências da Comunicação, sem contar outras especializações e cursos. Ele é, há anos, professor livre-docente da ECA/USP (Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo) em disciplina que aborda Ética para melhor viver e agir, atuando também como palestrante de diversos temas pelo seu escritório: o Espaço Ética.

Segundo já contou diversas vezes, o filósofo se decidiu por ser professor quando, durante uma apresentação de trabalho, ainda na escola, assumiu o palco e não saiu dali por mais de hora. Mesmo não dominando totalmente o tema que apresentava, Clóvis conta que gostou da atenção e posição com a possibilidade de ensinar aos colegas. Foi assim, de forma irreverente, que se iniciou a estruturação da sua, hoje longa, carreira.

Carreira à qual ele se dedica com afinco, mesmo sendo “uma profissão desvalorizada no Brasil”. E por que persiste o professor? Segundo ele, é pela “perspectiva de poder transformar a vida de meus alunos e alunas, o que compensa qualquer dificuldade”.

Você confere essa entrevista na íntegra a seguir.

Sincodiv-SP Online: Uma das teorias da etimologia da palavra trabalho é a de que ela venha do Latim “Tripalium”, que era uma técnica de tortura com três paus fincados no chão. A definição é curiosa. Que reflexão podemos fazer dessa perspectiva do trabalho? Por que parece tão exaustivo e difícil às vezes?

Clóvis de B. Filho: Parece porque é! As relações trabalhistas, por mais que as empresas se esforcem em dizer o contrário, em sua grande maioria, servem para extrair do colaborador o máximo que ele puder dar. O trabalho nunca é voltado para quem trabalha, e sim para quem contrata o trabalho. Sendo assim, parece, é e será cada vez mais exaustivo. Isso me parece claro!

Sincodiv-SP Online: Professor, você já contou algumas vezes a história de que, quando na escola, descobriu o que queria ser na vida ao apresentar uma miniaula. Você se diz apaixonado pelo seu trabalho, mas já pensou em mudar ou encerrar a carreira? Por que persistiu?

Clóvis de B. Filho: Sim, penso em desistir quando não dou aula. Entretanto, quando dou aula, penso na besteira que é desistir. As dificuldades de ser professor são todas, ocupando espaços de prestígio ou não. Se há uma profissão desvalorizada no Brasil, é a minha. Mas a perspectiva de poder transformar a vida de meus alunos e alunas compensa qualquer dificuldade. Por isso sigo em frente.

Sincodiv-SP Online: Como você, Clóvis, encara o trabalho e faz para se renovar e não desanimar?

Clóvis de B. Filho: É preciso dar sentido ao trabalho, preenchê-lo com significado. Algo que justifique para nós continuar fazendo o que fazemos, e que dependa exclusivamente do trabalho. Melhorar a vida de alguém, levar felicidade, transformar. Sem isso, deixamos nossa vida escorrer pelas mãos, sem sentido ou direção.

Sincodiv-SP Online: Como podemos definir o trabalho nos tempos de hoje em relação a como ele era pensado antigamente? Houve alguma mudança muito significativa na relação das pessoas com ele, em como é visto, no produto resultante e o que é considerado como trabalho digno ou não?

Clóvis de B. Filho: O trabalho só foi considerado alguma coisa de valor com a ascensão da burguesia e a consolidação do capitalismo. Até então, trabalho era visto como atividade subalterna e indigna.

Hoje, trabalho é, para além de digno, uma necessidade absoluta. Só não trabalha uma casta extremamente privilegiada ou aqueles que são absolutamente excluídos do sistema. De resto, nascemos e nos formamos quase que exclusivamente para o trabalho.

Para o futuro, com novas propostas de economia colaborativa, a carga de trabalho pode até diminuir, apesar de eu ser pessimista em relação a isso.

Sincodiv-SP Online: Por quê? Qual você acredita ser uma das maiores dificuldades atuais em relação ao trabalho?

Clóvis de B. Filho: As maiores dificuldades me parecem ser relativas a uma certa escravidão tecnológica. Os avanços que deveriam poupar tempo e aumentar a disponibilidade para atividades de lazer, na verdade, transformaram as jornadas de trabalho em um tempo interminável.

Chegar ao escritório em uma segunda-feira sem ter lido os informes no tablet ou celular já no domingo é uma ofensa à lógica atual. E, quanto mais avanço, mais ansiedade e sobrecarga existem. Penso que hoje as pessoas têm condições de definir o trabalho e as relações de trabalho, mas por uma série de motivos isso ainda acontece muito pouco.

Sincodiv-SP Online: Hoje se fala muito de um ambiente competitivo nas empresas onde é necessário planejamento e, ao mesmo tempo, ações rápidas. Nesse contexto, como você enxerga a questão da ética no trabalho? Qual é o panorama que se apresenta uma vez que nem sempre há espaço (ou tempo) para reflexões profundas?

Clóvis de B. Filho: A competição representa um certo tipo de ética. A empresa que escolhe a competição, necessariamente, rejeita a solidariedade. Isso porque colaboradores que competem não se ajudam. Então, ganha-se de um lado e perde-se de outro.

A filosofia moral sempre dá preferência àquilo que fortalece a convivência, os laços entre as pessoas. A competitividade pode estimular uma série de comportamentos nocivos, então é preciso ter atenção redobrada.

Sincodiv-SP Online: Como podemos nos observar no dia a dia para repensar tais ações no trabalho e nossa posição perante o próprio trabalho?

Clóvis de B. Filho: A pessoa deve ter clareza sobre as coisas que aceita ou não fazer. Saber quais são os seus valores pessoais e quais são os valores da empresa em que trabalha. E ponderar. Manifestar-se sempre que sentir que atitudes (institucionais ou pessoais) ofendam seus valores e desencadeiem desconforto, para que, coletivamente, as pessoas possam debater e reconsiderar as condutas que ali se estabelecem.

Sincodiv-SP Online: Qual o prazer de se trabalhar com ética e transparência? Como criar um bom ambiente nesse sentido? Quais pontos devem ser observados?

Clóvis de B. Filho: O prazer se converte numa relação de confiança. Um ambiente livre é um ambiente confiável, seguro, estável, ainda que se discuta e se transforme o tempo todo.

A segurança não está no engessamento, e sim na garantia de que todos terão voz e vez e que os valores daquele coletivo podem se transformar para atender às necessidades reais das pessoas que vivem e trabalham ali.

Para criar esse ambiente, basta a genuína busca do diálogo, da transformação e a aceitação da discussão e do debate.

Sincodiv-SP Online: Muitas pessoas se sentem sufocadas pelo trabalho, o que não quer dizer que ela esteja feliz fazendo aquilo, mas que precisa sobreviver. Como você enxerga essa situação? Há saída?

Clóvis de B. Filho: Essa é uma situação muito complexa, mas muito real. Um dos grandes fatores é o de que o principal afeto do mundo corporativo ainda é o medo. As pessoas são levadas a ter medo de tudo. E isso se revela até mesmo no mais primordial das relações de trabalho, que é a própria empregabilidade.

A grande maioria das pessoas é triste no trabalho. Casos de depressão, dependência de remédios controlados, ansiedade, estresse já dominam os pedidos de licença médica nos departamentos de gestão de pessoas.

A saída é a abertura e o reconhecimento do outro como ser humano. Sem isso, o trabalho continuará sendo “tripalium” e as pessoas meros objetos para a obtenção de lucro para o dono do meio de produção.

Sincodiv-SP Online: Em relação à produtividade nos negócios, pensando tanto no trabalhador quanto no empregador, como achar um meio-termo, de forma que o funcionário entregue seu tempo ao trabalho quando ali estiver e o empregador não “explore” o trabalhador em exagero?

Clóvis de B. Filho: O meio-termo requer que os dois lados cedam. Eu entendo que a relação, que é desigual por natureza, tenha também na negociação a mesma proporcionalidade.

A questão toda é que, para que as relações de trabalho melhorem, o empregador terá que abrir mão de mais coisas que o trabalhador, e isso é um problema porque, naturalmente, não há esta disposição, quer por motivos morais, quer por questões estruturais do sistema capitalista. Então, o caminho, mais uma vez, é o aprimoramento da convivência através de amplas discussões sobre princípios e valores.

Sincodiv-SP Online: Os distribuidores de veículos vivem hoje um momento de remodelação de mercado, redução de vendas e mais alguns desafios. Qual seria sua dica para se manterem firmes e dignos em sua atuação?

Clóvis de B. Filho: A criatividade na adversidade. Na mais absoluta alegria, nada se produz. São os momentos de adversidade que nos estimulam a sermos melhores e maiores. A tristeza produz os melhores sambas, os melhores poemas, os melhores livros. Por que não produzir os melhores distribuidores? Criatividade e coragem são a chave.

A vida é composta por muito mais dificuldades que facilidades. Não podemos esmorecer. Este é o meu recado!

Conteúdo produzido por Moraes Mahlmeister Comunicação. Entrevista realizada e redigida por Renan De Simone, editada por Juliana de Moraes. Publicado pelo site do Sincodiv-SP Online em junho de 2016.

Para acessar a publicação original, clique aqui: http://www.sincodiv.org.br/Sincodiv/portal/news_nova_2.php?txtCODIGOCONTEUDO=3945&txtLOCALCHAMADA=CARROSSEL