Renan De Simone

Bate-papo com Flávia Vallejo, consultora em comportamento animal e autora do livro O céu dos cachorros (maio/2012)

Veterinária pela Universidade de Santos, Flávia Vallejo atua hoje como consultora comportamental de animais e se empenha num trabalho que visa à humanização da medicina veterinária. Recentemente, lançou o livro O céu dos cachorros (editora Realejo Livros), no qual trabalha de maneira lúdica a questão da morte dos animais de estimação e como lidar com o fato, especialmente junto às crianças.

Antes de entrar na carreira que a permitiria exercer toda a paixão por animais que desde criança demonstrava, Flávia cursou três anos de Fonoaudiologia e já trabalhou com artes plásticas, mas só se encontrou quando pôde praticar seu talento aliado ao amor pelos pets.

Apaixonada pela interação social homem-animal desde o início de seu curso superior em medicina veterinária, Flávia frequentava congressos, visitava ONGs e participava de cursos a respeito do assunto já nessa época, o que definiu sua carreira.

Foi assim que percebeu que a questão do bem-estar dos animais está ligada ao relacionamento com os donos e não apenas a questões da ordem biológica dos bichos. Num trabalho de “psicóloga de animais e donos”, como define, Flávia contou ao Sincodiv-SP Online como atua e como surgiu a ideia do livro O céu dos cachorros, que já é sucesso entre crianças e adultos. Acompanhe.

Sincodiv-SP Online: Como surgiu a ideia de trabalhar com comportamento animal? A clínica veterinária não era suficiente?

Flávia Vallejo: Encontrei minha verdadeira vocação na veterinária, depois de ter feito três anos de Fonoaudiologia e ter trabalhado por anos com artes plásticas. Entretanto, a clínica não me satisfazia por completo. Iniciei com atendimentos em domicílio, mas percebi que grande parte dos problemas, que pareciam ser apenas biológicos, dos animais provinha de comportamentos e da relação das pessoas da casa com os pets.

Desde o início de minha graduação nesta área já tinha me interessado pelo assunto, participando de congressos, visitando ONGs, centros de zoonoses, buscando respostas para a relação homem-animal e pensando em como proporcionar o bem-estar para o bicho de estimação.

Quando passei a clinicar, entrei em contato não apenas como o universo de cada casa e família, mas também notei algumas tendências socioculturais, especialmente aqui na minha cidade, Santos (SP).

Percebi uma inclinação absurda das pessoas ao abandono de, especialmente, cães sem raça ou mesmo pessoas que levavam animais aos pets-shop e nunca vinham buscá-los, eram muitos casos. Tempos depois foi instaurada uma onda de abandono de cães da raça Pit Bull, sob a alegação de que eram agressivos. Tais casos são puramente culturais e dependem do relacionamento dos donos com seus bichos.

Assim, vi que poderia fazer um trabalho melhor atuando de uma forma mais psicológica nos casos do que tratando apenas de doenças do corpo, por assim dizer.

Sincodiv-SP Online: No ambiente familiar, quais são os problemas mais encontrados no trato com animais?

Flávia Vallejo: O que mais vemos é uma falta de consciência por parte dos donos, que veem os animais como simples objetos e não como membros da família, o que eles realmente são. Muitas pessoas têm os animais e querem se desfazer deles na primeira dificuldade. Se adoecem, se envelhecem, se não aprendem o que elas querem de forma imediata… Tudo se torna uma desculpa para se livrar da responsabilidade de cuidar do animal. As pessoas precisam pensar muito antes de ter bichinho, é uma decisão tão séria quanto ter um filho.

Sincodiv-SP Online: Hoje em dia você atua como veterinária também?

Flávia Vallejo: Não atuo. É claro que minha experiência nessa área conta muito, mas me afastei da clínica em si. Hoje sou especialista em atendimento comportamental.

Sincodiv-SP Online: E como é encarada essa profissão, já que não é tão comum de se encontrar? Quais as maiores dificuldades?

Flávia Vallejo: Hoje posso dizer que há um respeito maior pelo profissional que atua na área de comportamento e relação entre animal e dono, mas há poucos anos ela não era levada a sério. Foi difícil entrar no mercado e, apesar de enxergar uma necessidade absurda desse tipo de trabalho na maioria dos casos que eu atendia durante a clínica, não havia demanda.

A situação é melhor hoje e a profissão ganhou visibilidade com a atuação de pessoas como Cesar Millan, que levou o trabalho a público em livros e programas de televisão (como o show “O encantador de cães”, por exemplo).

As maiores dificuldades encontradas atualmente são em relação à falta de conhecimento das pessoas, elas confundem consultoria comportamental com adestramento, o que é totalmente diferente. Eu não treino o seu cão (por exemplo) para esta ou aquela tarefa sob um comando específico, mas sim analiso qual o problema entre você e seu animal, e identifico o que deve mudar na dinâmica familiar para corrigir o problema. É diferente.

A outra maior questão encontrada é: uma vez que o problema é identificado, e os donos aceitam minha ajuda, o desafio passa a ser mudar o comportamento das pessoas e dos bichos, o que não é simples. Os animais respondem às nossas atitudes bem mais do que às nossas palavras, imaginem vocês o quanto é complicado alterar a rotina de uma casa.

Nem todos estão dispostos a mudar, esse é o desafio da minha atuação. Sou uma psicóloga de animais e donos. Preciso conquistar as pessoas, identificar o comportamento incômodo do animal e analisar a dinâmica familiar para ver o que pode ser alterado. Não existe um padrão ideal e cada casa se adapta de uma forma, é preciso respeitar a maneira de ser dos lares.

Sincodiv-SP Online: Quanto ao livro O céu dos cachorros, sobre o que é e como surgiu a ideia?

Flávia Vallejo: O livro traz a história de um menino que acabou de perder o seu cão e fala sobre o que acontece quando os nossos bichinhos morrem. Apesar do tema parecer pesado, a obra tem uma veia cômica, mas que não satiriza a dor. Ela descreve o céu como um lugar em que todos os animais se unem e vivem em harmonia numa grande festa, sob um olhar infantil, portanto, brincalhão.

A ideia surgiu por experiências bem pessoais envolvendo meus filhos (um casal, ela com oito e ele com dez anos) e a perda de animais.

Sincodiv-SP Online: Como foi isso?

Flávia Vallejo: Há cerca de dois anos e meio, nós perdemos nossa cadela Luna. Ela estava doente, precisou de uma cirurgia, mas o quadro não melhorou e ela acabou falecendo. Na época, meus filhos tinham seis e oito anos de idade. Quando retornaram da escola e souberam que a Luna tinha morrido, vieram me questionar onde ela estava. Como qualquer mãe confrontada com tal assunto, que eu achava precoce demais, disse que ela tinha virado uma estrela (risos).

Para minha surpresa, eles me interromperam e disseram, “queremos saber onde está o corpo dela, não o espírito”. Fiquei atônita e tive de me explicar, criança não é boba e já na primeira experiência de morte pela qual passavam, exigiam respostas claras. A maioria das pessoas evita o assunto ‘morte’ com crianças, mas acredito que isso é errado, elas devem ter contato com essa realidade, mesmo que de maneira suave. Se a primeira experiência de perda puder ser com um animal de estimação, provavelmente a criança entenderá a questão melhor no futuro.

Com o passar do tempo, a tristeza permaneceu e me peguei pensando numa maneira de aliviar essa dor que a morte traz. Como desde pequena organizo melhor meus pensamentos por meio da escrita, desenvolvi um texto falando de como a Luna ainda estava presente em nossa vida.

Trouxe à tona as brincadeiras da cachorra, as coisas que ela roeu, os locais preferidos dela na casa, etc. O texto tinha um ar divertido e percebi que as lembranças ajudaram as crianças a passarem pela situação em vez de entristecê-las. Na época meu marido até brincou dizendo “isso dá um livro”, mas não levei a sério.

Pouco tempo depois, minha sogra tinha uma cadela que não estava muito boa e que teve de ser sacrificada. As crianças eram muito apegadas à cachorra, mas percebi que, apesar de sentirem falta dela, lidaram bem com a situação. Ou seja, o texto havia ajudado a elaborarem o luto mesmo que em uma situação diferente.

Foi aí, e por insistência de várias pessoas conhecidas, que dei uma forma diferente ao texto e iniciei uma busca por editora.

Sincodiv-SP Online: Quanto tempo demorou desde a ideia até a finalização e o lançamento do livro (em agosto de 2011)?

Flávia Vallejo: Entre a ideia de formatá-lo num livro e o seu lançamento decorreu um tempo de praticamente um ano e meio.

Sincodiv-SP Online: Como você trabalhou daquele rascunho que tinha em mãos até o projeto final?

Flávia Vallejo: Trabalhei pensando nos questionamentos das crianças, as perguntas são o motor da obra. “O que ela [Luna] deve estar fazendo? O que será que está acontecendo?”. Todas essas questões me impulsionaram. Até por isso, pelo fato de ter sido pensado sob este olhar infantil, é que acredito que ele tenha ficado leve e cômico.

Sincodiv-SP Online: Você já teve retorno das crianças ou mesmo dos pais a respeito do livro? Como foi?

Flávia Vallejo: Já sim! Foi ótimo. Ele tem uma grande aceitação, as pessoas se identificam com a história. Quando vou a uma escola ou num evento de divulgação da obra, as crianças debatem comigo, falam o que acham que está acontecendo e tudo o mais. Os pais contam como lidaram com situações semelhantes e quanto o livro facilitou a aceitação da criança.

Na verdade, o livro não é um substituto de uma conversa. Ela precisa acontecer, é dever dos pais explicar à criança o que acontece com o seu bichinho, mas a obra funciona como um facilitador, criando abertura para o assunto.

Quanto à repercussão de maneira geral, está sendo muito boa. Além da divulgação nas escolas e nos canais de mídia, um diretor de teatro me procurou para conversarmos sobre a possibilidade de transformar o livro em peça, o que eu acho incrível!

Sincodiv-SP Online: O céu dos cachorros é ilustrado pela Simone Matias. Vocês já se conheciam ou se encontraram por conta do projeto?

Flávia Vallejo: Nos encontramos pelo projeto. Quando a ideia se consolidou, comecei a buscar opções de ilustradores para a obra e, numa pesquisa, encontrei o site da Simone. Simplesmente me apaixonei pelo trabalho dela e, curiosamente, quando fui saber mais, vi que ela era de Santos, a minha cidade.

Marcamos um encontro e pedi que ela fizesse um piloto da primeira cena do livro, onde o animal acaba de morrer. Como sou uma pessoa direta, imaginava a cena de uma forma objetiva, quase dramática, mas ela me surpreendeu. A Simone passou a mensagem completa sem causar nenhum impacto visual negativo, ficou leve, perfeito.

Sincodiv-SP Online: Você acompanhou o processo de criação das ilustrações? Como é trabalhar num livro a quatro mãos onde uma coisa depende da outra?

Flávia Vallejo: Achei a sensibilidade da Simone muito aguçada e, apesar de acompanhar de perto cada etapa, dei a ela liberdade total para criar em cima do texto.

Achei que seria difícil ter alguém “mexendo” na obra, mas ela tem uma capacidade interpretativa tamanha que só surpreendeu. As imagens ficaram delicadas, com atrativo visual. Foi um facilitador para o processo!

Sincodiv-SP Online: Hoje, o que o livro significa para você?

Flávia Vallejo: Ele é o resultado de muito amor, pois é isso que embasa o relacionamento das famílias com seus pets. Ele significa uma homenagem aos animais que o inspiraram.

Sincodiv-SP Online: Já pensa num segundo livro?

Flávia Vallejo: Sim, está em desenvolvimento até!

Sincodiv-SP Online: Sobre o quê?

Flávia Vallejo: Ele fala da questão animal sob o viés ambiental, preservação x sofrimento. A ideia da obra é fazer refletir, questionar. O que você está fazendo para ajudar nesse tema? A proposta é despertar, já na criança, uma consciência socioambiental.

O livro será leve e estou trabalhando muito nisso. Ele é feito em rima, o que dinamiza a leitura e é pensado com uma personalidade para cada animal, para dar tom cômico.

Sincodiv-SP Online: Depois do sucesso da primeira obra e do preparo da segunda, você pensa em seguir a carreira de escritora? Qual seria seu público nesse caso?

Flávia Vallejo: Com certeza não vou abandonar minha profissão, mas pretendo incluir esta ao meu currículo (risos), até porque escrever “sobre animais para pessoas” é uma ponte para o meu trabalho. As histórias ajudam a sensibilizar e alcançar aquilo que pretendo, mostrar que os animais são parte da família e que o vínculo com eles deve ser do início ao final da vida.

Meu público é o infantil. É difícil mudar o adulto, mas a criança está aberta. É ela que temos de educar e trabalhar junto para conscientizar.

Sincodiv-SP Online: Qual é a dica, então, que você dá a pessoas que querem ter seu animal de estimação?

Flávia Vallejo: Ter um bichinho não é para qualquer um. É preciso amor, carinho, dedicação, responsabilidade e a certeza de manter o pet até o final de sua vida. Ter um animal de estimação é uma experiência maravilhosa, cheia de diversão. Problemas podem ocorrer, mas todos precisam saber que basta procurar ajuda nesse caso. Sempre há uma solução boa para todos!

Conteúdo produzido por Moraes Mahlmeister Comunicação. Entrevista realizada e redigida por Renan De Simone. Publicado pelo site do Sincodiv-SP Online em maio de 2012.

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