Renan De Simone

Bate-papo com Nelson Nolé, especialista brasileiro em próteses, fundador da Conforpés (junho/2017)

Em verdadeiras histórias que se confundem com a reinvenção da própria vida, um engenheiro pôde andar pela primeira vez depois de adulto, mesmo após nascer sem duas pernas e um braço. Uma tartaruga ganhou nova chance depois de gastar as patas de tanto caminhar no cimento e não alcançar mais o chão. Há o garoto se tornou um nadador olímpico, superando as dificuldades trazidas pela amputação de braço e perna esquerdos em um acidente de trem. Já o flamingo de zoológico perdeu uma pata, mas ganhou outra nova “não em folha, mas em fibra de carbono”. Por fim, um calendário diferente, com modelos que usam próteses, esbanjam saúde, vitalidade e beleza.

Afinal, o que todas essas pessoas e eventos têm em comum? Um nome: Nelson Nolé, fundador da Conforpés, empresa com sede em Sorocaba (SP), especializada em próteses para membros amputados. Um dos maiores especialistas do país na área, ele é reconhecido internacionalmente como referência para o assunto, enquanto por aqui, ganhou fama sua solidariedade por dedicar-se a pessoas que não podem pagar pelos seus serviços.

Os casos mais recentes e emblemáticos entre os atendimentos gratuitos, são o do garoto Vrajamany Rocha, que foi atacado por um tigre em um zoológico, em 2014, perdendo o braço; e de David dos Santos, ciclista atropelado numa ciclovia em São Paulo, em 2013.

Para saber mais sobre Nolé, empreendedor de Sorocaba, e seu protagonismo em uma área tão especializada, acompanhe a entrevista na íntegra a seguir:

Sincodiv-SP Online: O que motivou ou cativou na profissão que escolheu seguir?

Nelson Nolé: Sou natural de São Paulo e comecei a trabalhar por volta dos 13 anos em uma loja ortopédica, a Dr. Schooll’s, como office-boy. Entrei por um programa do tipo jovem aprendiz por conta de um curso que estava fazendo no Senac (Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial) e foi ali que começou minha paixão pelo ramo.

Depois, passei ao estoque da empresa à gerência até me tornar sócio e abrir uma filial na cidade de Santo André. Por algumas diferenças de pensamento, decidi desfazer a sociedade que mantinha para a unidade franqueada e vim para Sorocaba, onde montei a Conforpés, em 1968, cerca de 50 anos atrás.

Sincodiv-SP Online: Por que Sorocaba? Como foi esse início?

Nelson Nolé: Escolhi Sorocaba porque era uma cidade bem carente deste tipo de produto e serviço na época. Para se ter uma noção, pelo que eu conhecia do local, nem clínicas ortopédicas havia. Iniciei bem pequeno, dormia em meu próprio escritório e fazia as próteses no fundo dessa casa, onde montei minha pequena oficina. Foi assim que comecei. Depois, cursei Administração de Empresas e Economia para aprimorar conhecimentos em gestão.

Hoje, o prédio da empresa é próprio, possui três andares aqui no centro de Sorocaba e mais duas filiais, em Indaiatuba (SP) e Cuiabá (MT). Além disso, participamos de feiras, apresentações internacionais na América Latina e Europa, prestando serviço para clientes no exterior.

Sincodiv-SP Online: O que considera seu diferencial como empreendedor?

Nelson Nolé: Eu sempre digo que faço próteses, não faço milagres. Meu negócio foi crescendo aos poucos, mas acredito que o diferencial está no tratamento e no atendimento ao cliente.

Não adianta você ter um bom produto apenas. É preciso olhar para o cliente, ver se precisa de algo específico, como você pode ajudá-lo, da melhor maneira. Além das próteses, também oferecemos treinamento para as pessoas as utilizarem, ensinamos procedimentos e, nesse processo, vamos fazendo pequenos ajustes. A atenção é o que faz a diferença porque, muitas vezes, as pessoas acreditam que querem uma coisa, mas há outras melhores para ela.

Sincodiv-SP Online: Como assim?

Nelson Nolé: Por exemplo, certa vez eu estava no Paraguai, participando de um programa de televisão ao vivo que fazia doações. No meio da transmissão, surgiu um rapaz, Antonio, carregado nas costas por seu irmão mais novo. Antonio só tinha um braço e nenhuma das pernas. O rapaz me disse que queria uma cadeira de rodas.

Ele estudava Engenharia Mecatrônica e pretendia motorizar o produto. Perguntei para que finalidade ele queria a cadeira, então ele me disse que era para se locomover. Como contraproposta, eu disse: venha a Sorocaba e sairá de lá andando. Você ainda é jovem!

Pagamos a passagem dele, doamos as próteses e ele ficou cerca de 20 dias em treinamento conosco. Ele saiu do Brasil andando e não numa cadeira de rodas. Esse é o diferencial: participar da vida das pessoas e alterar o rumo de suas histórias – para melhor.

Sincodiv-SP Online: Você treina pessoalmente seus funcionários, hoje cerca de 65. Como é esse trabalho, quais são os princípios mais importantes a serem seguidos?

Nelson Nolé: Na verdade, quem os treina sou eu, sim, mas não só. Meus três filhos também trabalham comigo nessa função: Nelsinho, de 46 anos; Edson, 44; e Anderson de 38. Nossos princípios são simples. Respeito ao cliente, não importando quem seja, nem sua classe social. Todos merecem respeito e dignidade no atendimento.

Inclusive, recepcionamos tão bem as pessoas que hoje temos quatro funcionários que chegaram a até nós como clientes, comprando nossas próteses. Depois, tornaram-se contratados nossos e, hoje, atendem ou fazem parte de nossa oficina.

Sincodiv-SP Online: Você é lembrado pelas aparições na mídia (televisiva, sites, jornais, etc.) em doações a pessoas que sofreram amputações e não podem arcar com os custos das próteses. O que te motiva a essas ações?

Nelson Nolé: Nós doamos 30% de tudo o que produzimos e não é porque sou “bonzinho”. Fazemos uma boa gestão negócio e, portanto, acredito que é nossa obrigação. Temos que ajudar. Para mim é algo bem óbvio e específico porque meu tipo de trabalho me permite isso. Então é o que faço e incentivo meus filhos a fazerem.

O que me motiva é mudar vidas, mostrar para as pessoas que existe vida após a amputação, ajudá-las a se reinventar. É necessário se adaptar, mas a vida continua, muitas vezes até com elementos e atividades que são adicionadas. Já presenciei vários casos de pessoas que iniciaram alguma atividade até mesmo esportiva após a amputação e se realizaram. Quero que meus filhos continuem esse trabalho!

Sincodiv-SP Online: Você acompanha os casos e as pessoas depois de fazer as doações? Qual é o retorno que tem?

Nelson Nolé: Costumamos acompanhar sim, até porque, em muitos casos, não basta fazer a doação da prótese, é preciso fazer ajustes, treinar para o uso e mesmo trocar a prótese doada, em especial quando falamos de crianças que estão em fase de crescimento. É o caso do garoto Vrajamany que, quando teve o braço amputado pelo tigre, tinha apenas 11 anos.

O resultado é que desenvolvemos o relacionamento e o carinho pelas pessoas e elas se tornam parte da família. Torcemos por suas conquistas! O nadador paraolímpico Talisson Glock, que perdeu o braço e a perna esquerdos num acidente de trem quando jovem, é um exemplo. Fizemos suas próteses e acompanhamos seu crescimento: hoje ele é um atleta representando o Brasil em competições internacionais.

Em relação à incentivo estatal, veja bem: pago impostos até mesmo sobre os produtos doados (risos). O grande retorno é o reconhecimento das pessoas e a publicidade natural que acaba sendo gerada, o que atrai clientes.

Sincodiv-SP Online: E também atrai mais pessoas carentes…

Nelson Nolé: Sem dúvida. O que é bom, pois quem precisa de ajuda sabe a quem procurar. Mas também é ruim, porque temos uma fila e não conseguimos ajudar a todos logo de cara.

Fora isso, é óbvio que nossa postura atrai aproveitadores. Pessoas que podem pagar e querem de graça, políticos que querem indicar pessoas para nos usar de palanque…

É ruim, mas faz parte do jogo. Basta ter pulso firme e negar veementemente, é o que temos feito.

Sincodiv-SP Online: No segmento de distribuição de veículos, as empresas possuem áreas de atendimento especialmente voltadas para PCDs (Pessoas com Deficiência). Em sua opinião, quais os aspectos do atendimento mais importantes para esse público?

Nelson Nolé: Os vendedores devem atentar às necessidades dos clientes. Quando este público chega à concessionária, ele tem em mãos uma documentação que especifica, de acordo com a deficiência, quais adaptações o veículo necessitaria, mas isso não basta. Atente-se mais às pessoas e menos à documentação apenas.

O Brasil ainda vive preso numa “burocracia atrasada”, que se impõe como mais importante do que as pessoas – e não deve ser assim. Acredito que em pouco tempo haverá um movimento de redução burocrática no país em diversas áreas e isso deve contribuir para a melhoria da prestação de serviços e venda de produtos para PCDs.

Sincodiv-SP Online: Em nossas pesquisas para a entrevista, encontramos reportagens sobre próteses que desenvolveu para animais. Como é isso?

Nelson Nolé: Essa, obviamente, nunca foi minha especialidade, mas começou há cerca de 25 anos, quando desenvolvi um carrinho para uma cadela chamada Branquinha. Ela havia perdido as patas traseiras e produzi uma roupinha que prendia seu corpo a uma estrutura com duas rodas que substituíam suas patinhas traseiras. Hoje, este tipo de objeto é bem comum, mas não era há duas décadas e meia.

Sincodiv-SP Online: Foi uma solução caseira que virou profissão, então, pois você já ajudou até zoológicos estrangeiros?

Nelson Nolé: Não virou profissão porque não cobro por nenhuma prótese de animal que faço! Para mim, é desafio. As pessoas, às vezes, aparecem com casos inusitados e eu digo, “bem, nunca fiz, mas vamos tentar”!

A ideia é proporcionar bem-estar e qualidade de vida para os animais e, consequentemente, seus donos.

Sincodiv-SP Online: Quais os casos mais curiosos que já atendeu? É algo desafiador?

Nelson Nolé: Já atendi de tudo um pouco! Comecei com cachorro, depois vieram os gatos. A seguir, a coisa se expandiu. Já atendi uma tartaruga que andava em um chão de cimento e, ao longo dos anos, suas patas dianteiras se desgastaram e ela não alcançava mais o piso. Fiz próteses para que ela voltasse a andar.

Já criei próteses para patas de avestruz, pato, vaca, touro. O melhor é saber que os animais viveram bem com as próteses. O touro, por exemplo, até procriou! Reconquistou uma vida normal para sua espécie.

É um trabalho desafiador, sim, porque minha especialidade são os humanos e a anatomia dos animais é muito variada, então preciso conversar com veterinários e aprender sobre os bichos. E, ainda assim, surgem imprevistos, como foi o caso do flamingo chileno.

Essa ave estava num zoológico e após ser atacada por outro animal, perdeu uma pata. Estudei a anatomia, fizemos medições e criei uma prótese de fibra de carbono para ela. O resultado foi que os outros flamingos do zoológico passaram a atacá-la! Ficamos bem confusos com a situação…

Aparentemente, o flamingo tinha se adaptado bem à prótese, mas descobrimos que o problema era a cor escura da perna de carbono. Quando refizemos a prótese numa cor aproximada à do animal, seus pares voltaram a reconhecê-lo e cessaram os ataques. Foi bastante curioso. Um aprendizado.

Sincodiv-SP Online: No ano passado, a Conforpés lançou para venda um calendário com modelos mulheres que usam próteses. De onde veio a ideia? Aliás, a maioria das próteses ali são estilizadas, com desenhos e cores, essa também é uma prática inovadora?

Nelson Nolé: As próteses personalizadas foram uma demanda dos próprios clientes. Já passamos daquele tempo em que as pessoas queriam esconder suas próteses. Muitos jovens que sofreram amputações queriam produtos personalizados, então nós o fazemos a pedido. Podemos imprimir qualquer estampa, basicamente, desde que caiba no formato.

Quanto ao calendário, a ideia inicial foi do meu filho mais velho, o Nelsinho. Ele convidou diversas clientes que tinham feito as próteses aqui, inclusive por doações, para serem fotografadas para o calendário. O material foi impresso e vendido e o dinheiro foi para um fundo para ampliar as doações que fazemos!

O resultado foi muito positivo. São mulheres lindas, vencedoras e que ficaram muito confortáveis em frente à câmera, pareciam modelos profissionais. É o tipo de ação que ajuda a devolver a autoestima e encoraja outras pessoas a verem sua beleza, mesmo após um momento trágico.

O único problema da iniciativa foi o fato de que levei bronca de outras clientes que não foram convidadas! Não caberia todo mundo, precisamos até sortear algumas (risos).

Sincodiv-SP Online: Existem vários tipos de próteses, como a biônica, a eletrônica/mecânica e a estética. Quais as principais diferenças entre elas e como saber qual é a mais adequada para cada caso?

Nelson Nolé: Depende do preço e da necessidade do cliente. As próteses são como carros, elas servem a diversos propósitos. Você pode levar o popular ou uma Ferrari. As estéticas, por exemplo, são para compensar o peso de membros amputados e dar mais equilíbrio ao corpo, além de sua função para aparência.

As eletrônicas permitem movimentos, pois possuem eletrodos que captam estímulos musculares e cerebrais. As biônicas também o fazem, porém com desempenho muito superior. Essas últimas são bem mais caras e funcionam com baterias de alto desempenho (autonomia para 18 horas de uso), , podendo ser recarregada enquanto a pessoa dorme.

Tenho um cliente, o Celso, que recebeu duas mãos biônicas (entre 20 e 30 mil reais cada), por exemplo. Ele faz desenhos e pinturas, é um artista plástico!

Sincodiv-SP Online: As próteses biônicas têm um bom desempenho, mas um custo elevado também…

Nelson Nolé: Sim, mas o que pouca gente sabe é que o Banco do Brasil possui uma linha de financiamento especial para próteses. São liberados recursos para produtos de até 30 mil reais, com juros abaixo dos 5%. Isso é ótimo porque, com parcelas de menos de R$ 200,00 por mês, você consegue um produto de ótima qualidade e de acordo com sua necessidade.

Sincodiv-SP Online: Muitas pessoas amputadas sofrem das chamadas dores fantasma e as próteses ajudam na eliminação de tais dores. Como isso acontece?

Nelson Nolé: Sim, as próteses ajudam a eliminar dores fantasmas e também colaboram na adaptação das pessoas que perderam membros. Há também remédios que contribuem para o sumiço da dor fantasma.

A dor fantasma é um problema do desenho do corpo gravado no cérebro da pessoa. Assim como alguns pacientes que tiveram uma perna amputada, por exemplo, se levantam repentinamente no meio da noite para ir ao banheiro e caem por não se darem conta a tempo de que não conseguem mais se apoiar, muitas vezes a dor fantasma vem pelo registro de uma contração muscular ou nervo que a pessoa já não possui.

Olhar e tocar a prótese no lugar do braço, por exemplo, ajuda na adaptação. A questão envolve a reinvenção da imagem que se tem do próprio corpo.

Sincodiv-SP Online: Você também já esteve em outros países, não apenas fazendo cursos, mas também ensinando. Conte um pouco dessa experiência.

Nelson Nolé: Estudei bastante na Alemanha, mas participei de convenções e palestras também na Albânia, Paraguai, França, enfim, em especial na América do Sul e na Europa.

Caso curioso foi quando visitei um centro de reabilitação em Valiton, próximo a Paris, na França. Fui lá para conhecer o trabalho deles e, assim que lá cheguei, chamaram todos os alunos do local, colocaram uma mesa cheia de materiais e próteses em minha frente e pediram “nos mostre como você trabalha”.

De alguma forma, o trabalho da Conforpés, aqui em Sorocaba, no Brasil, virou referência para eles. Foi uma troca bem interessante! E, fico contente que meu trabalho contribua para melhorar vidas, além da qualidade dos produtos e serviços de próteses ortopédicas na América Latina e no mundo.

Conteúdo produzido por Moraes Mahlmeister Comunicação. Entrevista realizada e redigida por Renan De Simone, editada por Juliana de Moraes. Publicado pelo site do Sincodiv-SP Online em junho de 2017.

Para acessar a publicação original, clique aqui: http://www.sincodiv.org.br/Sincodiv/portal/news_nova_2.php?txtCODIGOCONTEUDO=4287&txtLOCALCHAMADA=CARROSSEL