
Avó, neta e filha conversam em uma biblioteca ainda não montada, com livros pelo chão, estantes semi-montadas, uma iluminação que varia do amarelado quente ao azul frio, dependendo da lembrança, dependendo do trecho da história.
O texto? Discussões sobre temas fortes como racismo, homofobia, machismo, religião, aceitação e intrigas familiares, passando até pelo suicídio.
Não corram ainda, sei que dói abordar alguns temas; sei que nossa estrutura emocional imediatista de hoje em dia está fraca e não quer lidar com assuntos profundos e difíceis, em especial quando nos reconhecemos nas falas e expressões preconceituosas; sei que parece drama demais, mas não é. O texto é leve, as atrizes trazem humor ao trabalho e você se pega fazendo o mais improvável neste contexto: rindo de si mesmo e de uma sociedade doente e hipócrita, mas é bom!
Além dos que os Nossos Olhos Registram é uma peça maravilhosa e leve, em oposição ao que se poderia imaginar pela minha descrição inicial. Isso porque ao longo de todo o texto, com pitadas psicológicas disfarçadas dentro do mais realista relacionamento familiar, há a introdução do humor, seja em frases sarcásticas ou quando enfatiza-se absurdos ditos e feitos em nome de uma normalidade que se revela o próprio preconceito encarnado.
(a partir daqui pode rolar um spoiler, mas ele não estraga nada porque vale o desenvolvimento dos diálogos e não o desfecho apenas, pois não é suspense – e não tem mordomo, então não tem assassinato rsrs).
Luiza Tomé, a avó, traz para o texto a leveza de uma senhora compreensiva com a neta que lhe revela um forte segredo. A consagrada Tomé quase te faz pedir colo para essa avó maravilhosa no desenrolar da história. Já numa idade avançada e pesando sobre o que realmente tem valor na vida, ela tem a tranquilidade de quem já viveu muito e aprendeu com seus erros e com o dos outros.
É a avó que tentará estabelecer uma ponte um pouco mais forte entre sua filha (Letícia Birkheuer), a personagem mais elétrica e cheia de energia da peça, e sua neta (Priscila Fantin), a meiga Sofia que mesmo em seus arroubos raivosos não para de demonstrar amor.
A filha é a típica madame interessada no dinheiro e coisas materiais, preconceituosa e preocupada com as aparências, seria facilmente tida como a vilã, mas não é. Essa não é uma história de culpa e apontar de dedos, apesar de muito se fazer isso ao longo de todo o trajeto narrativo.
A neta é uma figura doce e indecisa que quer contar suas mais recentes descobertas sobre si, mas tem medo da reação da família. Apesar de seu receio e suas indecisões, uma ideia lhe é fixa, está desfeito o noivado com o suposto “bom partido” que ajudaria seu rico pai a se eleger ao cargo de governador.
A filha acusa a mãe de sua mão dura e condutora, a mãe se defende e se descabela em argumentos pseudorracionais para forçar a filha a tomar a atitude que deseja e a avó conciliadora trabalha para ver suas meninas juntas.
Seria um drama banal, mas não é. O comportamento da mãe é o mais facilmente acusável e exposto, mas revela irresponsabilidades da avó desde sua juventude e a imaturidade da neta que não tem ideia das dificuldades e responsabilidades da vida.
Além do que os Nossos Olhos Registram é justamente o que o nome indica, um olhar que ultrapassa o óbvio, o imediato e no qual as relações são valorizadas sob outro prisma.
Com texto de Fernando Duarte (magnífico, que em papo leve contou que usou experiências próprias, entrevistas e histórias familiares para compor a trama) e direção de Fernando Philbert, as três mulheres brilham e, apesar da dureza aparente, é uma história que culmina naquilo que mais importa: amor!

Não é piegas, nem banal, pois fala-se de um amor próprio e descoberta de si. A questão do preconceito, seja qual for, vai além do não aceitar o outro, começa na não aceitação de si mesmo e uma batalha interna que muitas vezes nem admitimos estarmos travando.
Os livros espalhados pelo chão e pelas estantes trazem aquele ar de que há muita história por trás que não enxergamos em cada uma das pessoas e as capas não são suficientes para reconhecermos toda a narrativa. Alusão do cenário ao que está bem colocado no texto.
Como já disse, afinal, essa não é uma história de culpa e apontar de dedos, mas sim de amor e perdão, para si e para os outros. Pois é além do que os nossos olhos registram que podemos permitir os corações palpitarem e é ali que a vida acontece de verdade!
*Tive a maravilhosa oportunidade de acompanhar a premiere do espetáculo no dia 19/01/2018 a convite do amigo Vini Rigoletto, a quem agradeço imensamente.
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