Uma quarta qualquer – Parte I

amarelo-queimado-wallpaper-15281Ela entrou afobada na recepção do consultório.

– Olá, estou um pouco atrasada, mas preciso ser atendida hoje porque tenho um compromisso amanhã e essa dor está me matando. Pode verificar que meu nome deve estar aí, o doutor está aí? Posso entrar já?

Ele estava sentado atrás da escrivaninha e, diante daquela entrada agitada, quase como uma personagem insuflada de diálogos que não eram apenas dela, só conseguiu sorrir. Quando a torrente de palavras amenizou, ele piscou lentamente, olhando-a nos olhos, e disse:

– Boa tarde! Você deve ser a paciente das 15h – e checando uma folha –, Bianca M., certo? O doutor está sim no consultório e seu horário está reservado. Uns minutinhos a mais não matam ninguém, não é? – e ele sorriu novamente, apertando seus olhos como costumava fazer quando achava algo divertido.

– Não mesmo! – concordou ela, sorrindo, acompanhando a aparente alegria do rapaz e com um tremor leve percorrendo o corpo ao ser fitada por ele daquela forma.

– Que bom que também pense assim. Pois só vou te pedir que aguarde um pouco porque, por coincidência, o doutor também vai se atrasar um pouco. – e ele quase riu ao dizer a frase. Uma criança apareceu aqui como emergência e encaixamos nesse espaço. É um paciente divertido e que nunca deixa o doutor trabalhar, pois tem medo, mas hoje ele disse estar disposto a ser atendido e a mãe o trouxe para aproveitar a janela de boa vontade.

– Tudo bem! – respondeu ela, sem alternativas, uma vez que os “minutinhos a mais não matariam ninguém”.

– Tome uma água e se sente um pouco. Prometo que será breve – o atendente a olhou e sentiu uma forte atração por ela, sem saber o motivo especial, apesar de já ter identificado durante sua entrada o quanto ela era bela e atraente.

Poderia se dizer que ali que se conquistaram. Ele ficou encantado com aquela entrada quase cômica dela. Ela se maravilhou pela forma como ele a acalmou, menos pelo que falou do que por aquele sorriso.

– Sem problemas, vou aguardar. Você também é dentista? – ela perguntou.

– Não. Pelo menos não ainda. Sou estudante, ainda na faculdade, e aqui trabalho como recepcionista e auxiliar.

– Achei que já fosse dentista também, não me leve a mal, mas não se vê muitos homens recepcionistas.

– Eu sei, mas é que a maioria tem um jeito carrancudo que nem sempre serve para lidar com o público. Eu já gosto disso.

– Você parece ser bom nisso!

– Obrigado. E você? Qual é o seu trabalho, Bianca?

– Sou psicóloga!

– Uma daquelas pessoas que assustam todo mundo por parecer saber o que estamos pensando, né?

– Mais ou menos, isso é lenda. Às vezes acho que nós é que somos os loucos, tentando ajudar outras pessoas a mudar.

– Você gosta do que faz?

– Gosto, muito! É o tipo de coisa que não dá para fazer sem amor. Mas gosto de outras coisas também.

– Como o quê, por exemplo?

– Tenho muita vontade de escrever, contar algumas histórias.

– Ficção?

– Mais ou menos, seriam contos e crônicas, histórias curtas. Algumas inventadas, outras baseadas em coisas que já vi e ouvi. Mas teria de ser ficção mesmo, caso contrário eu poderia ser processada – e sorriu para ele levantando as sobrancelhas e abrindo os olhos de uma forma que o capturou por vários segundos.

– Toda ficção tem seu quê de realidade, não? – disse ele quase como saindo de um transe.

– Às vezes acho algumas ficções mais reais que o próprio dia a dia!

– Imagino que, como psicóloga, já tenha escutado coisas bem interessantes.

– Muitas coisas, nós somos tipo um padre no confessionário, mas sem poder resolver as coisas com um terço – ele riu da brincadeira.

– Por que não escreve, afinal?

– Tenho alguns esboços, mas não sei. Acho que me falta tempo para preparar o material, ou coragem. Não sei se tenho segurança o suficiente para produzir algo assim. Ou então me falte a história principal, sabe? Um conto de abertura que justifique todo o resto, algo forte, cheio de sensações, que valha ser contado…

– Entendo. No entanto, é preciso arriscar um pouco, coragem! Ninguém está 100% certo das coisas que faz. Faça algo diferente, aposte. Nem que seja em pequenas coisas. Mude o jeito que pede seu café, almoço. Altere as ruas pelas quais caminha. Pequenas mudanças levam a grandes. Logo, você vai estar pronta para arriscar seu livro!

– Curioso! Acho que tem razão. Meu noivo sempre me diz algo parecido. Tenho medo de perder o juízo de vez, eu acho.

– Juízo é bom, mas esquecer-se dele também é. Não se pode ter muito juízo, caso contrário, não aproveitamos a vida. Seu noivo deve ser um cara esperto.

– Acho que ele está certo. Vocês dois, na verdade. Meu noivo é um cara incrível, não poderia encontrar ninguém melhor.

– Há quanto tempo estão juntos?

– Quatro anos!

– E vocês pretendem se casar?

– Sim, estamos planejando, inclusive, mas há muito que ajeitar ainda. E você, é casado?

– Não, longe disso na verdade. Solteiro.

– Convicto? – brincou ela.

– Não, apenas temporariamente. Gosto de passar um tempo sozinho, recuperando feridas, me conhecendo, sabendo o que quero.

– Como profissional da área eu te digo que isso é ótimo. Entender-se antes de passar ao outro é uma missão dura, porém necessária.

Nisso a porta do consultório se abriu e saiu de lá um garoto gorducho com longos cachos castanhos, com uma cara de zangado e segurando uma massinha vermelha na mão. A mãe o trazia pela outra mão e agradeceu ao doutor por tudo. Ela cumprimentou Bianca ao passar por ela e deu tchau ao atendente.

– Só um minuto que eu já vou te atender – disse o dentista a Bianca e, voltando-se ao rapaz, completou – Fernando, pode preparar a sala, por favor?

– Claro, doutor. Com licença, Bianca! – e apertou novamente o olhar, ela fixou aquele sorriso na memória como poucas coisas ficariam em si.

A restauração

O tratamento daquele dia não era nada complicado, apenas uma restauração que havia aberto e precisava de reparação. No entanto, o doutor informou Bianca que sua arcada tinha um dente que estava rotacionando e que seria preciso utilizar aparelho para corrigir o problema.

Ela negou a ideia inicialmente, argumentando que, depois de seus 25 anos, não queria utilizar aparelho, mas reconsiderou, pensando nas dores que uma mordida errada poderia ocasionar ao seu maxilar. O que a incomodou, inicialmente, foi saber que teria de fazer consultas regulares a cada 15 dias para realizar a manutenção do protótipo. Entretanto, o que não tem remédio, remediado está!

Com o passar dos dias, a mulher percebeu que não havia nada de ruim em ir ao consultório duas vezes por mês. Pelo contrário, as conversas com Fernando eram sempre gostosas e animadas e, nas semanas em que lá não precisava ir, ficava feliz de receber a ligação do auxiliar marcando a hora da próxima consulta.

Fernando também adorava os papos com Bianca M., tanto os que ocorriam na recepção quanto os pelo telefone, pois, eventualmente, quando ligava em um horário entre as consultas da psicóloga, conseguiam ter 10 minutos de uma conversa empolgada, cheia de risadas e animação para ambos.

O quase dentista parecia conhecer de tudo um pouco e não havia assunto sobre o qual não falasse. Bianca se deixava levar quando em presença dele, agradada do jeito do rapaz que aliviava os momentos de tédio da espera em um consultório.

A cada consulta, Bianca passou a chegar mais cedo para conversar e ficavam quase uma hora se conhecendo. Ele passou a chamá-la de Bia e ela o chamava de Nando, por sua vez. Quase como dois amigos íntimos, a conversa corria fácil, sem esforço, o assunto não morria. Cada um falava de seus anseios, sentimentos, pensamentos, riam juntos e se descobriam.

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Publicado por

RDS

Jornalista, escritor, metido a poeta e comediante. Adorador de filmes e livros, quem sabe um filósofo desocupado. Romântico incorrigível. Um menino que começou a ter barba. Filho de italianos, mas brasileiro. Emotivo, sarcástico e crítico, mas só às vezes.

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