Amarelinha

amarelinha Eu lembro com saudades de algumas coisas que trazem sensações deliciosas, outras ainda existem no meu dia a dia e continuam a mexer comigo.

Céu

Lembro de adorar ficar olhando o céu de outono. Ele costumava ser mais limpo que o de verão e não tão quente, mas bem azul.

Lembro de amar noites de verão, dessas que trazem consigo uma brisa maravilhosa e a sensação de que uma aventura ou algo incrível está para acontecer.

Lembro de ir me deitar de noite, mesmo sem sono, e ficar repassando o dia na cabeça, pensando nas situações e conversas. Em como tudo tinha sido bom ou, para o que não havia sido, em como poderia ter sido. Recriava meu mundo todas as noites, deitado, olhando uma penumbra lotada de figuras do meu cotidiano.

Gosto de olhar para as luzes de Natal na sala da minha casa quando todos já foram dormir e só existe uma paz tranquila entre aqueles brilhos coloridos e meus olhos, admirados como uma criança já foi um dia com o mundo.

Sinto falta de conversar com meus amigos e amigas todos os dias e divagar com eles a respeito de mundos impossíveis. Sonhar em grupo com loucuras e desejos que só um adolescente pode ter.

Gosto do cheiro de xampu nos cabelos recém lavados, e ainda molhados, das meninas. Quando elas saíam de suas casas e apartamentos, durante aquelas noites quentes de verão, e vinham ter comigo sob um céu aberto. Ainda gosto deste cheiro e do toque suave da pele de uma dama.

Sinto falta de ter medo de fantasma e coisas de terror. Quando um cobertor era minha proteção impenetrável e quando um filme era mais assustador que o dia seguinte e as indecisões da vida.

Inferno

Lembro de adorar observar aquele céu de outono. Ele costuma ser gelado o suficiente para você passar frio de camiseta e chinelo, porém ruim para usar calças e meias, porque aquecem demais. Aquele ar gelado que resseca os lábios, mas faz seu nariz ficar escorrendo. Até você assar o coitado de tanto limpar.

Lembro de observar o céu quente de verão perto do anoitecer, quando aqueles malditos siriris sobrevoavam todas as lâmpadas da casa e vêm parar dentro do meu nariz e orelha. Quando não conseguia me livrar dos insetos desgraçados andando pela camiseta. E suava, mesmo parado.

Sei como é ir me deitar, mesmo sem sono, porque estou de saco cheio de algo, e não conseguir dormir. Ficar me revirando na cama até odiar meu quarto inteiro, quando está frio para ficar descoberto e calor para se cobrir. Lembro de repassar o dia na cabeça e desejar que eu estivesse morto antes de amanhecer novamente. Deitado, na penumbra, irritando-me com alguma luz piscante insistente no meu olho, seja de um monitor em stand by ou um roteador insuportável.

Gosto de ficar sozinho na sala com minha árvore de Natal, odiando cada vez que tenho de ligar o pisca-pisca, que sempre está perto de uma tomada inacessível. Quando os galhos entram no seu olho ao se abaixar perto da planta ou quando metade das luzes não acende por conta de uma única e infernal lâmpada queimada – que eu nunca sei qual é. Adoro a rinite atacada por desembrulhar enfeites empoeirados que só usamos uma vez ao ano.

Sinto falta de tentar me desvencilhar de pessoas insuportáveis na escola que pensavam ser minhas amigas. Quando um dos seus colegas levava o violão mas não tocava nada. Quando a menina que eu gostava pedia conselhos para saber como beijar – e possivelmente dar para – outro. Quando os professores me perguntavam coisas que eu não sabia e eu me envergonhava em frente a todos. Lá, onde ficávamos imaginando coisas e levávamos advertência por termos fugido da aula de Educação Física. Quando todos eram virgens… menos a menina que te pedia conselhos, que dava para todos, menos para mim.

Gosto de ver as mulheres que acabaram de tomar banho e, mesmo com oito cremes diferentes, continuam feias e com os cabelos ressecados. Quando os cremes da face são mais densos que uma polenta e qualquer tentativa de cumprimentá-las mancha suas roupas. Gosto de beijar velhas que cheiram a pasta de dente barata, quando as dentaduras quase caem quando elas tentam falar algo com pressa.

Sinto falta de ter pesadelos de noite, depois de assistir filmes de terror com classificação 18 anos quando eu tinha apenas seis. Quando as imagens dos peitos nus das mulheres eram legais, mas amedrontavam depois de elas serem mortas e mutiladas. Quando eu não conseguia dormir por medo de fantasmas e me borrava por qualquer vento debaixo da porta ou sombra nas janelas. Quando eu sentia que a vida sempre fora indecisa, mas que em algum momento não era você quem tomava as decisões e sim todos os adultos ao seu redor que, assim como eu hoje, não tinham a menor ideia do que estavam fazendo.

Fim

Eu lembro sem saudades de algumas coisas que trazem sensações confusas, outras ainda existem no meu dia a dia e continuam a mexer comigo. De maneiras diversas e irritantes, às vezes.

A angústia e a felicidade caminham lado a lado.

 

 

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Publicado por

RDS

Jornalista, escritor, metido a poeta e comediante. Adorador de filmes e livros, quem sabe um filósofo desocupado. Romântico incorrigível. Um menino que começou a ter barba. Filho de italianos, mas brasileiro. Emotivo, sarcástico e crítico, mas só às vezes.

4 comentários em “Amarelinha

  1. é…”em algum momento não era você quem tomava as decisões e sim todos os adultos ao seu redor que, assim como eu hoje, não tinham a menor ideia do que estavam fazendo”

    tão tão eu

  2. Nossa ótimo o texto, são dois lados que todos temos um otimista e outro pessimista que só ver o s defeitos do mundo, deu saudades de um tempo passado o texto ajudou a reviver sensações parecidas da adolescência.
    Foi prazeroso ler esse texto.

  3. Nossa maravilhoso esse texto, voltei ao passado me senti uma menininha novamente, foi sensacional lembrar dos medos e desejos
    antigos onde havia proibições que já não existem mais.

    beijos Shirley

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