Cerca de 20 anos depois – ou sobre o vai e vem das ondas nos mares da vida
Alguns anos se passaram e aquela jovem de 23 anos amadureceu. Mariana era agora uma engenheira de sucesso, bem casada e feliz, com um casal de filhos lindos. Seu marido se chamava Adilson e tinha sido como uma surpresa para ela. Os dois já se conheciam dos tempos de colégio e até mesmo trocavam olhares na época, mas nunca puderam arriscar nada por conta de Lívia. Mariana sabia que ela era apaixonada pelo rapaz – e eles até tiveram um pequeno caso numa festa junina – e sempre respeitou. Mas isso ficara no passado e agora eles eram um casal realmente feliz. Com as costumeiras crises e brigas de um relacionamento fadado a durar e ser uma bela história de amor a ser contada e relembrada durante alguma festa longínqua de bodas.
É claro que ao longo dos anos Mariana acabava sabendo que fim levara Vinícius e Lívia. Aline era uma amiga do casal e contava o que sabia quando visitava Adilson e Mariana. A bem da verdade, Aline já não se sentia mais bem com Lívia e Vinícius, mas Lívia praticamente implorava para vê-la de vez em quando e, segundo Aline, a coitada parecia trazer em si um peso difícil.
– Como assim? Perguntava Mariana.
Aline explicava que, nesses 20 anos juntos, Vinícius praticamente tomara conta da vida de Lívia. Eles não haviam se casado, apesar de terem um filho – um garoto de uns nove anos e com um jeitinho "muito esquisito", segundo Aline –; Lívia abandonara sua carreira de diretora escolar para "trabalhar" com Vinícius (que vivia apoiado na herança do pai que morrera há alguns anos); ele perdera o jeito aventureiro que possuía; e se tornava cada vez mais possessivo e desmedido, até mesmo gritando com Lívia na frente de amigos e familiares por motivos estúpidos e insensatos como a maneira de se cortar um lanche.
Aline, que era também psicóloga, dera um rápido diagnóstico de que Vinícius tinha todas as características de um psicopata. E as duas amigas, Aline e Mariana, riam enquanto tomavam um café numa tarde de domingo, mas não sem Mariana ter uma sensação esquisita de que a antiga amiga, Lívia, não estava bem.
Mais algum tempo se passou e Aline contara-lhe que Vinícius havia feito algo horrível. Depois da morte de seu pai, o rapaz vinha travando uma briga judicial com o próprio irmão pelas posses da família, tudo porque havia um inventário mal escrito, supostamente (Vinícius era bem capaz de fraudar algo assim, Mariana bem o sabia) deixado pelo pai, que dividia a herança do velho de forma desigual. E, misteriosamente, o prejudicado era o irmão de Vinícius e não ele. Ao invés de entrar na justiça para corrigir o erro, ele atacava o irmão em busca daquilo que ele não havia construído. Aline não se conformava com tal fato.
Meses depois, Mariana recebeu em seu aniversário uma carta de Lívia. Não era muito profunda, assim como não são os dizeres entre pessoas, que tanto se afastaram pelo tempo, que pouca coisa existe em comum entre elas. Entretanto, Mariana percebeu um tom quase de desespero nas linhas no papel. Lívia estava sobrecarregada pelo monstro que Vinícius se tornara, mas a mulher que agora lia aqueles dizeres não podia esconder uma ponta quase que de satisfação naquilo, mas na verdade achou triste. Ignorou a carta, mesmo com um "PS" pedindo resposta da "amiga".
No ano seguinte, no meio de uma tarde qualquer, Aline ligou para Mariana perguntando se ela não gostaria de ficar com uma cadelinha pequena e mansa. A amiga agradeceu, mas explicou que não conseguiria cuidar de mais um animal. Os seus dois cães (um Labrador e um São Bernardo), já tomavam todo o quintal da casa e o restante dos espaços disponíveis.
– Por quê? Você a encontrou na rua?
– Não – respondeu Aline –, ela era da Lívia e do Vinícius…
– Você está de brincadeira comigo, Aline? Por que eles dariam o cachorro logo para mim?
– Não dariam para você, a cadela só tem de sair de lá.
– E qual é o motivo?
– Parece que ela pegou alguma doença e eles não a querem mais.
– Meu Deus, e por que não a levam a um veterinário?
– Eles levaram, a cachorra já está até curada.
– Então o quê?
– Parece que o Vinícius pesquisou em alguma página da internet e encontrou que a doença poderia afetar a criança e etc. Esses sites nunca são confiáveis e mesmo nessa fonte as chances eram tidas como mínimas, mas eles querem se desfazer da cadela.
– Isso é muito errado, um animal de estimação é parte da família. Você não se desfaz de um filho só porque pode pegar alguma coisa dele. Vou ver se conheço alguém que queira a cadela, Aline, daí te aviso. Mas faço isso pela cachorra e não por aqueles imbecis.
– Você sabe que o Vinícius nunca gostou da cachorra. Eu percebia no olhar dele que ele só esperava uma chance para se livrar dela. Ele não gosta de nada que possa trazer alegria ou quebrar aquele clima sombrio e controlador que tenta impor sobre a casa… enfim. Se souber de alguém me avise, caso contrário, acho que eles podem até sacrificá-la .
Mariana desligou o telefone se sentindo muito mal e tentou não pensar nisso o resto do dia. Adilson chegou do trabalho e a reconfortou nos braços. Ela tinha sorte por ter um homem amável ao seu lado. Ele não era perfeito, mas sabia rir e fazer rir, brincava com as crianças, era inteligente e tinha um coração doce. Naquela noite, Mariana rezou a Deus em agradecimento por sua família.
Quando o ano já estava próximo do fim, Mariana e Adilson receberam a triste notícia de que o pai de Lívia havia morrido. O casal foi ao velório daquele tão risonho e simpático senhor que tantas vezes acolhera Mariana. Lá encontraram a viúva e as duas irmãs de Lívia e tentaram consolar a todos. Apesar de seus desajustes com Lívia, Mariana amava aquela família.
Vinicius, mesmo morando na casa dos pais de Lívia há três anos, só chegou ao enterro do pai de sua namorada (porque não eram mais que isso depois de tanto tempo – e nem a chama do namoro tinham, na verdade) no final. Não desceu nem do carro e usou o filho de desculpa para não velar o sogro.
Não se passou muito tempo até que Aline viesse contar outra notícia bombástica. Lívia, a mando de Vinícius, pedira para sua família para ficar encarregada da papelada em relação aos bens de seu falecido pai e todos haviam aceitado. Entretanto, numa manobra planejada entre Vinícius e seu advogado, eles haviam tentado destituir os herdeiros de seus direitos. Infelizmente para Lívia e Vinícius, a família percebeu a jogada e não assinou os duvidosos papéis.
Lívia, que nunca saíra da casa dos pais, mesmo estando com um filho e com mais de 40 anos, passou a tentar a convencer sua mãe de que Vinícius queria fazer aquilo para o bem dela, dizendo que, caso as outras filhas não abrissem mão de seus direitos, ela, a mãe, perderia a casa e tudo pelo que lutou toda a vida.
– Isso simplesmente não faz sentido, Aline. As irmãs de Lívia sempre ajudaram os pais e até ela mesma, eles já têm suas próprias casas e vidas, não precisam desse tipo de coisa.
– Eu sei, Mari, eles nunca fariam e nem fizeram nada disso. O problema é que a mãe da Lívia já é idosa e compra o que falarem pra ela. Com o Vinícius e a Lívia enchendo a cabeça da senhora de minhocas, simplesmente aconteceu uma briga em família.
– Meu Deus, sério?
– Sim, agora é que a Lívia vai estar sozinha mesmo com aquele monstro e o filho esquisito deles. Eu não vou mais lá, a casa está com um clima pesado. Com se até fantasma pedisse socorro, sabe?
– Que final infeliz.
– Nem me diga… E o problema é que ainda nem terminou.
Se amar é difícil por nos fazer sofrer, tanto mais o é a frieza. Pior que a dor de amor, que nos aquece, é a sensação do desprezo, que congela nossos sentimentos.
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