Hora H – Parte II

sunset O rapaz era cativante. Jeito risonho, sempre bem humorado, não perdia uma oportunidade para uma de suas sacadas ligeiras. Renato era um cara simples, fácil de se gostar. Costumava andar acompanhado de seu violão. "Uma voz que fala sem palavras e diz muito mais do que longos discursos", como gostava de dizer, mas ele mesmo era adepto de horas de conversas, em especial com Agatha, por quem se apaixonara perdidamente.

Agatha e Renato formavam uma dupla única, mistura quente de paixão e sentimentos intensos. Tornaram-se amigos, além de amantes.

Agatha costumava admirar a forma como Renato sentava de noite na varanda do pequeno apartamento do centro da cidade que eles alugaram depois de um ano juntos. Ele se sentava em um pequeno banco, admirava os sons e luzes da cidade, suspirava várias vezes e dedilhava seu violão, compunha. Sempre fora um artista, uma alma insaciável pela poesia, dócil no agir, mas violenta nos dizeres. Renato encantava e mexia em recônditos profundos de todos que ouviam sua canção.

Se a garota se encantava com o rapaz o mesmo deve ser dito no caso oposto. Agatha era musa de Renato, fazia-o sorrir, inspirava-o a derramar lágrimas enquanto criava. Às vezes era dura com ele, os poetas carregam em si o mal de viverem por tempo demais em mundos inalcançáveis e alguém os têm de pegar pelos pés antes que se percam flutuando. Estranhamente, ela lhe funcionava de âncora e motivo de devaneio.

E depois de três anos juntos, no aniversário de 21 anos de Agatha, as coisas saíram um pouco do controle. Já há alguns meses um rapaz da empresa dela estava dando em cima da garota. Por ser uma menina simpática e evitar desconfortos, Agatha tinha usado de meios suaves para se desvencilhar das insistências do rapaz, mas não foi suficiente, ele continuava a persegui-la.

No dia do aniversário, Renato resolveu fazer uma surpresa, chamou todos os amigos dela em um bar para comemorarem juntos, mas ele mesmo não apareceu. Agatha estranhou e ficou mesmo chateada por ver as horas passando sem que Renato chegasse. Ele havia dito que tivera problemas com a família e que talvez chegasse para o final da festa.

Mesmo rodeada de pessoas, Agatha se sentiu sozinha e exagerou em um drinque ou outro e dessa brecha foi que o rapaz do trabalho se aproveitou.

Sentada numa mesa reservada próxima do palco onde estava para começar um show, ela foi abordada pelo garoto. Depois de algumas palavras ele forçou o beijo. Distante de sua sã consciência, Agatha começou a escutar a inebriante balada de um violão que iniciava seu passeio pelas notas no palco. A voz doce do cantor a contagiou e ela tentou repelir aquela boca estranha que a invadia. Tarde demais!

No palco, Renato, que fazia um show especial para sua amante e aniversariante silenciou. Todos no bar ficaram perplexos e viram Agatha com o outro rapaz enquanto o homem de sua vida jazia sob a luz de um holofote no palco. Como uma tragédia teatral Renato permanecia no escuro, em silêncio, iluminado apenas por um facho de luz.

Quando a garota tentou se levantar, um pouco cambaleante, o artista já abandonara o tablado. Uma amiga levou Agatha para sua casa onde passou a noite e tentou se recuperar. Só conseguiu voltar para seu apartamento e de Renato no final do outro dia, mas já era tarde.

Ao entrar naquele que fora o seu ninho de amor não encontrou nada além de suas coisas cuidadosamente separadas e um bilhete pedindo que entregasse as chaves ao dono do imóvel. As coisas de Renato não estavam mais lá, ele havia sumido.

A garota procurou por Renato por diversas noites e só o encontrou três dias depois, bêbado, agarrado com duas garotas depois de um mini show que fizera num bar de ambiente duvidoso. Ele não atendia suas ligações, não respondia suas mensagens, parecia nunca tê-la conhecido.

Apesar da atitude de Renato, Agatha entendeu que ele agia desta forma porque estava despedaçado por dentro. Para um poeta, ver a queda de sua musa é o mesmo que perder o motivo de viver.

Tentou conversar com ele, mas não conseguiu. A garota se irritava quando tentava tocar no assunto e não sabia se explicar. Ademais, ela também se sentia traída, expulsa de sua casa sem ao menos ser consultada. A vida virou de pernas pro ar.

Renato dedicava-se cada vez mais aos shows noturnos e seus horários não batiam com os de Agatha. A garota deixou de ver o brilho especial nos olhos do rapaz e tudo desmoronou. Separaram-se assim: ele machucado pela sua musa, ela desencantada com seu poeta que não conseguia mais inspirar…

Um ano se passara desde então e eles nunca mais haviam se visto.

Seria tolice dizer que não pensaram um no outro, mas a distância física consegue enxaguar antigas mágoas e realçar bons momentos. Tanto Agatha quanto Renato pareciam ter se perdoado pelos erros e seguido em frente, mas ela ainda estremecia quando pensava naquele olhar castanho cantando para ela.

E de repente, enquanto terminava de escutar a música, a garota se deu conta de que queria vê-lo. Não sabia por que, mas precisava ver Renato. Quem sabe lhe explicar de maneira calma tudo o que aconteceu ou ouvir dele a versão da história.

Agatha saiu correndo da livraria, o que fez com que o vendedor e Pedro lhe olhassem de modo estranho. Correu algumas quadras pensando onde deveria ir para encontrar Renato, precisava lhe falar naquele instante.

Tentou seu celular, mas não obteve resposta. Ligou na casa de seus pais, mas soube que ele não morava mais lá. Perguntou onde então, mas eles não lhe deram o endereço, apenas um número de telefone que chamou em vão.

Desolada, naquele final de tarde de outono, quando o dia nada mais é que alguns borrões escarlates no céu Agatha caminhou lentamente para uma praça ali perto e se sentou em um banco onde ficou a fitar o chão, numa espécie de catatonismo pós-euforia.

Não muito longe dali escutou algumas notas musicais passeando pelo ar. A alguns metros de onde estava, num banco de costas para ela, escutou um rapaz cantarolando a música que ouvira há pouco na livraria.

Teve um sobressalto, estremeceu e nem acreditando no destino e nem em seus olhos, viu Renato de costas, cantarolando a canção que parecia ter feito para ela.

Agatha caminhou em direção ao rapaz e quando estava próxima o suficiente escutou claramente as palavras.

 

Caminhando de volta para casa sozinho

Num cinza de mundo, sem cor na verdade

Voltando para paredes que não fazem mais um ninho

Os olhos se enegrecem em interna tempestade

 

E na hora H está que nos separamos

Sem o toque sem a pele agora

Na hora H ta que não mais estamos

Não H ta mais, ela foi embora…

 

A menina disse:

– Gostei da sacada. A hora H… Senti uma homenagem.

Renato estancou na hora e se virou para confirmar com o olhar o que os ouvidos duvidaram, era sua musa que estava defronte a ele. Ele sorri. De um jeito leve, suave, mas não consegue esboçar qualquer outra reação, seus olhos têm um brilho intenso.

– Continue, por favor – diz Agatha, mas o rapaz não se move – , continue… adorei esta canção. Achei a história linda, mas particularmente daria um final mais feliz a ela.

– E como seria esse final? – finalmente fala Renato depois de uma pausa.

– Acho que o rapaz deveria voltar para casa, mas ter a certeza de que é amado e que encontrará o que procura.

– A vida nem sempre parece tão simples. A caminhada às vezes cansa.

– Mas não deveria, todo mundo que volta para casa caminhando merece uma recompensa. Ele tem de saber disso.

– Ele costumava acreditar nisso, mas algo se destelhou, perdeu a cobertura.

– Eu disse que ela precisava ser dupla.

– A crença?

– Não, a cobertura.

– E agora?

– Você já sabe qual é o prêmio de consolação, um nome, mas dessa vez já tem uma história ao lado dele, o que falta, afinal?

– Todo o resto da caminhada, juntos, de preferência!

– E o que estamos fazendo aqui parados com tanta sola para gastar?

– Você já me conhece, sabe que sou impulsivo, mas você está disposta a andar?

– Sempre estive, bobinho. E, além do mais, como teríamos passado tanto tempo nos conhecendo se eu não bebesse o seu almoço e seu ônibus de canudinho?

– Dessa vez acho que vou pedir de caramelo.

– Com cobertura dupla!

– E sem "repelimento"!

Eles aproximam suas faces devagar, fitando os olhos um do outro. Os dois sentem o peito disparar e o primeiro beijo ocorre. Primeiro, sim, porque quando o amor realmente agarra o mundo sempre começa a girar a partir daquele instante, e nada antes faz sentido.

 

E na hora H está que nos reencontramos

Com o toque, com a pele agora

Na hora H ta que de novo estamos

Eu e Agatha juntos, sem demora…

 

E o mundo é sempre uma balada de amor para os corações enamorados!

Publicado por

RDS

Jornalista, escritor, metido a poeta e comediante. Adorador de filmes e livros, quem sabe um filósofo desocupado. Romântico incorrigível. Um menino que começou a ter barba. Filho de italianos, mas brasileiro. Emotivo, sarcástico e crítico, mas só às vezes.

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