Era sábado. Um dia de outono, com folhas secas rolando pelo chão ao sabor do vento. Ela caminhava lentamente por uma avenida cheia de árvores, queria ir até aquela livraria próxima da esquina.
Não era o melhor programa para uma tarde num final de semana, mas não queria ver ninguém naquele dia, ou pelo menos não estava disposta a ver todas as pessoas que estavam disponíveis a ela. Por um momento olhou aquele céu azul, com pouca luminosidade, e percebeu que dali a poucas horas o sol se poria.
Uma leve sombra perpassou seu semblante e seus lábios tremeram de leve. Colocou os braços ao redor do corpo como se sentisse desprotegida, apesar de não estar com frio.
Balançou a cabeça como se sacudisse de leve para afastar um pensamento e seguiu ao seu destino. Ainda doía.
Adentrou a livraria e um vendedor veio lhe fazer perguntas típicas. Dispensou-o com um sorriso agradecido que morreu rapidamente na boca. Foi se distrair nas prateleiras de livros e não encontrou nada que a atraísse, mas abriu um volume qualquer mesmo assim.
– Gosto da reflexão dos patos – uma voz simpática vindo de sua esquerda a despertou.
– Desculpe, respondeu. Não entendi!
– A reflexão dos patos, este livro que você está vendo – apontou para as mãos da jovem – adoro quando o autor divaga sobre a construção da família humana baseada na estrutura dos patos. Seguindo uma mãe maior e onipotente que pode nem mesmo ser a que colocou os ovos… – ele continuou falando algo que ela não deu atenção, ela apenas sorriu. Ele era simpático.
– A propósito, meu nome é Pedro – disse o rapaz estendendo a mão para cumprimentá-la.
– Agatha, respondeu estendendo a dela após uma pequena pausa. Ainda não se sentia desperta, como se a livraria e as pessoas estivessem passando por ela e, por mais que andasse, sentia que não havia se movido e permanecia dentro de seu mundo, introspectiva.
O rapaz fez algumas perguntas que respondeu de maneira vaga, ele estava se esforçando, parecia bom… não como ela estava acostumada, não como era antes.
Depois de algum tempo ela pediu licença dizendo que precisava procurar uns CDs e se dirigiu à outra prateleira. Como se utilizando de uma desculpa para se afastar da conversa daquele rapaz que não sabia o nome, apesar de ter certeza que ele o dissera, Agatha retirou um fone de ouvido e deu o play no CD que estava de amostra sem nem mesmo ver qual era.
Não passou muito tempo até que seu olhar se fixasse em um ponto qualquer, não importava o que penetrava pela sua retina, seus olhos estavam virados para seu mundo interior, para lembranças que penetravam pelos seus ouvidos. Era a voz dele, inconfundível!
A balada que tocava era mansa, mas profunda, ele cantava com dor, com sentimento:
Eu nunca conheci a perfeição até vê-la pela manhã
Nunca reparei na beleza das pequenas coisas até então
Não via o real vermelho de uma maçã
Não sabia o quanto valia o som de uma respiração
Os suspiros que apenas ela era capaz
O toque da mão, o detalhe do contorno de sua pele
O abraço apaixonado, o beijo sagaz
As lembranças em mim que nada apaga ou repele
A maneira como os dias cinzentos se abriam
Apenas por eu ver aquele olhar
Porque os desejos dos corpos não se continham
Eram ardor intenso, sol a brilhar
E na hora H está que nos separamos
Sem o toque sem a pele agora
Na hora H ta que não mais estamos
Não H ta mais, ela foi embora
Nos ofendemos por uma dessas coisas da vida
Um beijo roubado, uma fala apressada
Abandono, viagem só de ida
Um garoto partido e uma alma cansada
Não sei o que ela diria, mas aqui ainda há
Há um homem que estremece ao toque de sua mão
Aqui ainda está
Um prisioneiro da alma, um refém de seu coração
Caminhando de volta para casa sozinho
Num cinza de mundo, sem cor na verdade
Voltando para paredes que não fazem mais um ninho
Os olhos se enegrecem em interna tempestade
E na hora H está que nos separamos
Sem o toque sem a pele agora
Na hora H ta que não mais estamos
Não H ta mais, ela foi embora…
A música continuava em seu ouvido, mas o que aparecia agora em sua mente era a cena da primeira conversa. Anos antes lá estava ela, sentada sozinha numa praça, não muito distante de onde era a livraria, quando ele se aproximou. Ela não estava pensando em garotos, mas ele a surpreendeu:
– Olá, eu sou o Renato… Claro que isso não deve significar grande coisa pra você, acredito que não me conheça, então é apenas um nome. Mas a conversa tinha de começar de alguma maneira, melhor um nome sem uma história agora do que uma conversa que pode não chegar a lugar algum, e você não ficar sabendo nem mesmo meu nome…
– E se eu não quiser saber de história, nem seu nome e nem conversar com você? – Agatha retrucou em tom bem humorado.
– Aí pelo menos você já descobriu que eu tenho uma personalidade impulsiva e tem um nome pra colocar nessa história quando for falar para alguma amiga sua sobre um cara esquisito que você conheceu.
– Bem, o fato pode ser tão pequeno que eu nem tenha vontade de contar e, depois, talvez você não seja como está se mostrando agora. Quem sabe não é apenas um tímido que se encheu de coragem para vir falar comigo só agora? E se já estivesse me observando?
– Nesse caso acho que eu mereceria uma recompensa pelo meu esforço. Qual o seu nome?
– A sua recompensa seria saber apenas o meu nome?
– Na verdade este seria o prêmio de consolação, a recompensa seria eu poder gastar o dinheiro do meu almoço e da minha condução te pagando um milkshake pra ver até quando você consegue me repelir.
– Olhe que sou boa nisso! – respondera Agatha sorrindo.
– Tomar milkshake?
– Repelir pessoas…
– Aposto que já vi melhores "repelidoras". Aceita o desafio?
– Se eu aceitar você não vai levar vantagem alguma. Vai voltar andando para casa por ter pago a conta.
– Tanto quanto melhor! Depois de um milkshake faz bem andar. Quem sabe eu não descubro que nós vamos embora pelo mesmo caminho? – Renato parecia ter sempre uma resposta para tudo e isso encantou Agatha.
– Não vai funcionar porque, de qualquer forma, eu irei de ônibus.
– Tudo bem! Então você paga a minha passagem e eu te faço companhia.
– Eu não vou pagar sua passagem, você nem sabe se pega o mesmo ônibus que eu.
– Então nós cancelamos o encontro e você só me dá o prêmio de consolação. Qual o seu nome?
– Agatha!
– Belo nome, e também um dos mais difíceis de se conseguir. Quase perdi meu almoço e a volta pra casa por conta dele.
– Você já tem meu nome, e agora?
– Quero descobrir se você é boa ou má!
– Como?
– Aceita beber meu almoço e ônibus de canudinho?
– Olha que eu faço você andar…
– Se você vier junto para me repelir, tudo bem!
– Então quero com cobertura dupla!
– De "repelimento"?
– Não, bobo, de chocolate!
– Com gosto de caminhada, então!
E caminharam juntos. Agatha não se controlara e rira, ele se mostrara cativante e surpreendente desde o primeiro encontro, ou "aparição", como ela gostava de chamar . A cena se passara quatro anos atrás, ela tinha 18 anos então e, apesar de já não estar mais na escola, iniciou um namoro colegial com Renato…
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