Não assisti novamente ao filme, o que me deixa muito sujeito a erros de minha memória e, mais ainda, a acréscimos que minha mente pode fazer sem que eu perceba. E, depois desta longa e desnecessária introdução, chegamos ao que interessa. O filme vem de um livro de 2001, não li a obra.
Amor sem Escalas fala de uma não-vida! O filme é um drama-comédia, desses que te fazem rir e pensar numa existência meio desgraçada, mesmo que não te deixe às lágrimas.
Curioso que a primeira sensação que tive com a película, foi a de liberdade. Clooney interpreta um cara que é contratado para despedir pessoas. A empresa tem um profissional, ou vários, que precisa mandar embora e, para não sujar as mãos, contrata alguém de fora para fazer o serviço e paga bastante para isso.
Clooney viaja muito, muito mesmo, de avião, indo de um local a outro para despedir pessoas e tentar aconselhá-las a mudar de vida e de emprego. Na maioria dos casos ele arruína vidas, mesmo que as pessoas não se deem conta disso logo de cara.
Como uma pessoa que precisa carregar sua existência numa pequena mala e estar sempre ponto para partir, a casa do personagem aparece muito pouco no longa e, quando é mostrada, nada mais é que um local frio e sem a alma de um vivente, apesar de organizada (mania que parece ser recorrente ao personagem).
Não pretendo aqui contar o filme, mas o resumo é que ele é solteiro, sai com várias mulheres em locais diferentes e encarna um pouco o espírito do marinheiro, mas sem acumular “uma mulher em cada porto”. Na maioria das vezes, ele acumula apenas pontos… sim, pontos, ou milhas, se preferir. Acumula as distâncias rodadas como se isso fosse lhe garantir algo, um preenchimento do vácuo no estômago que, de início, parece nem existir.
Ele é acompanhado por uma garota que está treinando para exercer o mesmo trabalho que ele e conhece outra mulher em situação semelhante (que viaja bastante a trabalho, apesar de ter outra função) de estar sempre longe de casa.
A menina teve uma recente decepção amorosa e ele se mostra como uma rocha para afetos, até aconselhando-a contra o apego. Até que ele é pego. Clooney se apega a esta outra mulher viajante e, apesar do sexo, não chega a nada mais com a dita. Na tentativa de um “algo a mais”, ele descobre que ela é casada e tem uma família e que as mini-aventuras que tiveram não significou nada, apenas diversão. Ele passa de caçador à caça.
Sem um lar fixo (já que nunca volta e fica em sua casa), sem pessoas a quem se apegar (já que só tem relacionamentos passageiros), sobra ao personagem apenas a sua profissão, que também não gera laços, uma vez que o joga de um lugar a outro com uma pequena mala às costas, vendo pessoas que tem de dispensar e nunca mais encontrar.
O personagem de Clooney vive basicamente dentro de aviões e aeroportos, locais de passagem. É uma vida supermoderna. E quando digo supermoderna não estou apenas colocando que ele é “pra frentex” (me senti mal de usar este termo) e não se importa com os modelos antigos, mas me respaldo no conceito do antropólogo francês, Marc Augé.
No livro Não-lugares – introdução a uma antropologia da supermodernidade, Augé estabelece uma diferença entre o que são lugares e não-lugares. Antes de tudo, ele discute a questão dessa Supermodernidade.
Coloca que vivemos numa era de aceleração temporal na qual a história tem pressa, ou seja, se antes a delimitávamos em alguns fatos específicos e determinávamos os momentos de acordo com eles, a partir de agora, não funciona mais assim. A maioria dos acontecimentos são levados a cabo como importantes, mas isso nivela todos eles, se tudo é fator essencial, nada o é realmente.
O segundo ponto levantado é o da contração dos espaços e do tempo. Com melhor mobilidade e acesso a informações, imagens e etc., o mundo ficou pequeno, nos sentimos conectados e parte de tudo, mas isso destitui-nos um pouco de nossa identidade local.
O terceiro ponto, e consequência de todos os outros, é o individualismo. Capazes de se conectar a tudo, com todos os acontecimentos elevados à categoria de fato histórico, logo, estamos desligados do local, das comunidades e grupos e o individualismo organiza cada vez mais nossa vida.
Dentro dessa supermodernidade conceituada por Augé é que o consultor especialista em despedir pessoas se encaixa, e vive.
Seguindo ainda pelo caminho do antropólogo francês, se um lugar é caracterizado como um espaço identitário, relacional, histórico; um não-lugar seria exatamente o oposto: local sem identidade, não-relacional e que não cria momento histórico.
Como grande exemplo destes não-lugares, o autor coloca os locais puros de passagem: rodoviárias, trens, aviões, aeroportos e qualquer outro onde o individualismo é praticado em grupo, uma contradição supermoderna, mas totalmente compreensível quando se olha um voo no qual passageiros dividem um espaço sem compartilhá-lo de fato. Milhares de histórias passam por ali sem se misturarem, não criam espaço antropológico.
“O não-lugar é o contrário da utopia: ele existe e não abriga nenhuma sociedade orgânica” (AUGÉ, 2007, p. 102).
Os não-lugares são os espaços desses viajantes que, como Clooney interpreta no filme, estão vazios e apenas em trânsito. O problema é que a grande maioria se desloca por um não-lugar para alcançar um lugar, o que não é verdade no caso do nosso consultor.
Sem relacionamentos, com um emprego que é automaticamente uma dispensa, com um lar para o qual não volta e com sua vida resumida a uma pequena mala onde não cabem sonhos e lembranças, ele vive em aeroportos e aviões, em não-lugares, sem identidade. Portanto, o personagem se caracteriza com alguém com uma não-vida (não no sentido biológico, obviamente) e se torna uma não-pessoa… pelo menos até que tente tomar outro rumo.
O que marca bastante é o fato de que, quando ele tenta correr atrás de algo que daria a ele um laço (um encontro familiar ou a busca pela mulher viajante), não encontra e parece voltar a se sentir confortável em sua situação. Uma não-pessoa não carrega os sonhos em si, e provavelmente não carrega desilusões.
O nome do filme em inglês é Up in the air, que pode significar, simplesmente, “No ar”. A referência é dupla, não só à vida viajante do consultor, como também à ideia de indecisão, coisa inacabada que a expressão “no ar” tem (e que se mantém em inglês).
Amor sem Escalas, por fim, fala de uma não-pessoa que vive uma não-vida, que tenta resgatar algo, mas fracassa, e decide esperar mais um pouco, deixando a decisão pra depois, um pouco incerta, um pouco no ar!
Ótimo texto, Renan! Fiquei mais interessado em ler o livro do Augé do que assistir ao filme… rs. Me fez pensar que os não-lugares podem se referir a lugares não necessariamente físicos, mas que trazem algo da ordem do “pertencimento” (é possível?). E daí estamos falando de identidade. Durante a leitura me ocorreu dois filmes que tem como semelhança as viagens de avião: Clube da Luta e; O Terminal. Claro que o buraco é mais embaixo, mas com a teoria da supermodernidade é possível outras articulações destes filmes que não cabem neste breve comentário.
“Viajei”?! rsrsrs
Abs
Não viajou não, Paulo, pelo contrário, abriu opções para se refletir a respeito do tema em outras perspectivas. A teoria da supermodernidade e dos não-lugares do Augé permite sim essa leitura, uma vez que Identidade é uma das características usadas para definir lugares de não-lugares. Logo, sendo espaço histórico, identitário e relacional, um lugar tem tudo a ver com a sensação de pertencimento do sujeito, que, no filme, é o que parece escapar ao personagem, ele não pertence a local algum, ou melhor, pertence a um não-lugar, o que o deixa como uma não-pessoa, e quando ele acredita ter encontrado alguém em situação semelhante à sua e acha que compartilha uma situação, se decepciona e se vê vazio. Quanto ao “Terminal” do Tom, vale pensar numa inversão, ou numa tentativa, a tentativa de criar uma identidade, historicidade e relacionamento num não-lugar como um aeroporto. Engraçado que para tentar significar seu período ali, o personagem de Hanks remete sempre a sua missão com a latinha de seu pai, evoca momentos históricos napoleônicos e apela para o amor, todos meios de tentar buscar um pertencimento, mas, apesar do período ali, parece que ele só se torna sujeito quando sai desse não-lugar e pode voltar à sua história, enfim, a análise precisa ser bem mais profunda, mas vale pensar, o Clube da luta é outra piração, mas dá pra viajar sim no tema. No bom sentido, claro! Abraços