Morre um ideal – “Remember, remember…”

V-for-VendettaO Brasil me parece sempre um pouco atrasado, é curioso isso. Mais curioso ainda porque não estou falando de um atraso puramente legislativo, de infra-estrutura ou de tecnologia, mas sim de um atraso de correntes de ideias.

Esses dias têm sido infestados de informações (às vezes nada boas) a respeito do movimento Ocupem (ou ocupe) Wall Street, o que se mostra interessantemente atrasado talvez, mas está lá.

Não posso negar que achei romântico o movimento, e importante. Na verdade eu fiquei um pouco desconfiado, desde ontem, quando parei para pensar na “crise de sentido” dos nossos tempos. Quando toda a estrutura ideológica parece falhar e se “desmanchar no ar”, e quando todo mundo percebe isso e admite abertamente que não existem mais ideais a serem buscados, algo me incomoda. E não me incomoda só o fato de um fim de “uma era heroica”, mas sim a maneira como todos compramos essa ideia.

Sou mesmo um dos que pensa que o sentido acabou, que as grandes teorias faliram e hoje tudo é tão relativo que nada pode ser pego na mão por mais de minutos sem que se desmanche, será mesmo?

Admitir isso não seria, talvez, perceber que não há mais pelo que lutar e o que importa, afinal, é trabalhar o máximo que se conseguir para acumular capital e ter uma vida “boa”, respaldada socialmente. Ou seja, acabaram-se os ideais, não há pelo que, ou por que, lutar, não vale a pena dar a cara a tapa por nenhum conceito, pois tudo cai, rui, e quem seria louco de sustentar areia, é isso, não é?

O incômodo está aí!

Quando todo mundo concorda demais com algo, vejo mais problema do que solução ou um simples conceito de sincronicidade de Jung, pensamentos pensados simultaneamente, etc. Vejo, na verdade, uma venda massiva de ideia. Será que, afinal, a cultura de massas acabou só porque os canais estão mais “interativos”? De que interatividade falamos, afinal?

A modernidade é muito boa e, por si só, um saco. Os iluministas iluminaram tanto que acabaram nos ofuscando. É fácil admitir que nossa busca por novos conceitos e verdades nos levam a uma destruição e reconstrução contínua da realidade e verdades e, os caras que sacaram isso foram realmente geniais (adoro Marshall Berman, por exemplo) no início, mas hoje isso se tornou perigoso.

Perigoso porque antes era crítica e agora se tornou motivo para não se apegar a nada. A constatação de tais teses, ao invés de servirem para uma parada de respiro social que nos permitisse reflexão e a construção de ideais mais fortes, nos levou a uma inércia pura e simples que diz “é, chegamos a este ponto e daqui não podemos sair, o jeito é viver o ‘que tem pra hoje’”.

Sempre que algo está estabelecido há muito tempo tendemos a ver aquilo como normal, mas nos esquecemos que, geralmente, quando algo é posto (ou imposto), é porque alguém se beneficia daquilo, e nem sempre (na verdade quase nunca) é a maioria.

A ideia é simples e óbvia demais. Quem, ou o quê se beneficia da sensação que temos hoje de que nada mais é concreto, sólido? O quê é que se beneficia dessa nossa inércia e da não defesa de conceitos, preceitos, valores, ou o que diabos quiser chamar que nos falte hoje em dia nessa sociedade relativizada que nosso querido Eisten teria vergonha de viver?

Às vezes a resposta parece óbvia demais para ser verdadeira, mas existe uma bússola gigante apontando para ele: o Mercado (com letra maiúscula porque hoje é uma entidade), o Capitalismo, o sistema econômico social que nos enfiamos com a desculpa de que é o “menos pior” e o que mais oferece oportunidades de “mudanças”.

Não é simplesmente por Ele (não Deus, apesar da caixa alta, mas o Mercado) que deixamos as coisas no pó? Ora, se os seus conceitos ruíram, se seus pais estavam errados quanto aos valores passados a você, se sua banda preferida estava errada e já não retrata a realidade, se todos os filósofos e pensadores estavam incorretos e tudo muda tanto a ponto de tudo ou nada se comprovar seriamente, não importa mais ser alguém. Ou antes, para ser alguém hoje, é necessário apenas uma palavra de três letras da nossa Língua: ter.

Ter, acumular, comprar, consumir (às vezes me impressiono pelas ideias de Huxley em Admirável Mundo Novo já na década de 30 – “viva Ford!”).

Enlameados

Estamos enlameados nessas ideias, nesses conceitos, e é muito difícil pensar fora dessa estrutura. Criamos até mesmo um dispositivo psicológico de segurança de sempre pensar na crítica de nossas ideias antes mesmo de tentar defendê-las de maneira intensa.

Enquanto escrevo este texto, por exemplo, estou me martirizando internamente elaborando uma contra-proposta (ou teoria) que diz que, na verdade, toda essa minha libido sublimada investida aqui é uma vã tentativa romântica de me agarrar a algo que pareça sólido, palpável, algo que não me escape e, para isso recorro a diversas ideias passadas, vistas (e que, pela lei moderna, já desgastadas) para me justificar. Minha cabeça critica minha decisão de escrever este texto pelo simples fato de parecer estar expondo o quanto me sinto frágil sem ter uma ideia concreta para defender… E agora?

Concreto

Dentro dessa lógica, é muito mais fácil se apegar ao que o Mercado oferece. Minhas teorias e conceitos se dissolvem, ou melhor, parecem ser facilmente contestáveis no mundo de hoje (globalizado, regionalizado, interativo, onde as formas de controle estão “caindo”… sei), mas o que eu posso ter de material não. Quando compro um iPad, por exemplo, sei de suas vantagens e desvantagens em relação a outros produtos, ou suas limitações, mas não sou criticável por isso.

Posso ser associado à marca, e olha que legal se isso acontecer e me virem com o mesmo valor do logotipo (valor? Que palavra mais curiosa que desponta em todo lado hoje. Aposto que não é o mesmo “valor” que se exigia de um homem há centenas de anos atrás), mas, na pior das hipóteses, posso me defender de possíveis problemas e buscar um novo produto que represente melhor o momento. Sim, é mais fácil trocar o que temos do que o que somos, que sacada legal do capitalismo!!! =(

Darwin

Já é sabido que o Capitalismo parece ter triunfado e fato corroborante com tal afirmação é o de que hoje esse sistema se nomeia como Capitalismo. Como li num texto recente, antes, só o fato de dar nome a ele já significava que você era de esquerda (esquerda? O que é isso? – de esquerda hoje só temos os canhotos).

O Capitalismo é Darwinista, sobrevive porque se adapta. Basta ver que os principais críticos do sistema acabam sendo assimilados por ele. “Você me critica, que legal, será que sou tudo isso mesmo? Quero que você desenvolva mais essas ideias! Venha aqui e eu te pago para que você continue falando de mim”, diz o sistema com um sorriso convidativo no rosto.

O nosso querido gênio da arquitetura, por exemplo, se diz comunista, mas seus pagamentos não parecem ter contribuído muito para a distribuição de riquezas.

vdevingançaO que tudo isso tem a ver?

Vocês devem estar se perguntando o que tudo isso tem a ver com o movimento dito no início. Ora, o que me deixou feliz e triste ao mesmo tempo, foram as reações a respeito do Ocupem Wall Street, inclusive a minha.

Não dá pra negar que muitos pensam (pelo cunho das matérias se vê), e eu mesmo tive essa sensação logo de cara, que as pessoas reunidas ali só estão atrás de um oba-oba, buscando um sentido para uma vida vazia e que “ora ou outra esses ‘hipongas’ vão se cansar de se drogar, mijar em árvores e dormir em barracas, e vão voltar para suas casas, sejam onde forem”.

Esvaziamos o sentido do movimento antes mesmo dele ter força. Acreditamos que é pulverizado, que não chega a lugar nenhum e que o legal é comprar um celular novo com acesso a internet para ler essas e outras notícias, isso sim acalma nosso facho… pelo menos até a semana que vem.

Mas por que o atraso do Brasil?

A revista Época (edição 700), trouxe uma pesquisa sobre a sensação do brasileiro a respeito do país e, olha que incrível, justamente no aniversário da setingentésima edição da publicação, a capa é de otimismo!!!

O brasileiro confia mais no país, as coisas estão melhorando, o consumo aumentou, a produtividade também, tudo indo bem…

Façamos uma análise bem rápida, já que o texto é longo.

Conversando outro dia com uma amiga (no trabalho) chegamos a conclusão de que, nas últimas décadas, os EUA se mostraram como a fonte mais segura de investimento internacional, a Europa também sempre esteve por ali, ou seja, economias fortes e estabelecidas. Quando se notava uma crise por vir, o dinheiro dos investidores era automaticamente retirado de economias emergentes como a do Brasil, porque mais frágeis, e jogado nos locais que rendiam menos, mas eram mais seguros: EUA e Europa.

Hoje, as economias fortes são as que estão em crise e os emergentes têm segurado a barra. Logo, o Brasil “país do futuro” parece finalmente ter chegado. Exceto por um problema, estão passando a batata quente.

O dinheiro, nesse esquema de investimento, e em outros (como já visto), é puramente virtual. Cresce sem existir, valoriza sem motivos reais e só é bonito em números, pois quando alguém quer retirar a grana e utilizar de outra maneira que não repassando virtualmente os dividendos, dá merda! O sistema inflaciona, os juros estouram e o Brasil tem de ser uma economia segura com um retorno alto para os investidores, ou seja, deve manter juros altos com baixo risco… combinação não palatável ao sistema.

E foi aí, comparando o movimento Ocupem Wall Street (desgastado psicologicamente nas pessoas antes mesmo de começar) com o otimismo brasileiro, que vi o quanto somos atrasados.

Demorou tanto tempo pra chegar a bonança (ela chegou?) que estamos cegos e deixamos de lado o fato de que ela só chegou até aqui depois de já ter falhado em outros locais. Estamos pegando restos de um sistema que já faliu, como os trens e aviões ultrapassados que compramos do exterior por acordos bizarros de importação e exportação.

Por mais fraco que pareça o movimento do Ocupem Wall Street, as pessoas estão tentando acreditar num ideal, numa mudança, propondo que o modelo estabelecido não é o único. E me lembro dum texto que li do Paulo ontem (nesse blog): “Prefiro que elas toquem em algo que não sei dar nome, e que fique assim! Que faça sentido sem ter um sentido! Que seja visceral!”.

O contexto do texto era outro, portanto minha crítica não é à sensação que ele descreve dentro daquele sentido, mas acredito que essas palavras se encaixam bem nesse outro contexto. Estamos constantemente sentindo algo, forte, visceral, que não sabemos o que é, mas que, de alguma forma o sentido nos escapa, e nos condicionamos ao escape deste uma vez que é mais fácil não nomear do que se propor a defender algo que talvez seja derrubado.

Fugimos do luto, da possibilidade de ter uma ideia destruída e, para isso, não nos apegamos a ideia alguma. Esse é o conceito que nos foi vendido.

Aí minha cabeça martela novamente na contra-proposta e diz que eu só estou pensando nisso porque estou condicionado demais pela cultura estadounidense e que, por proteção psíquica, devo encontrar motivos para ver que os EUA continuam avançando, nem que seja num sentido crítico, enquanto nós é que mantemos a visão de colônia, assim posso ter a segurança dum cenário conhecido…

A mim, parece que compramos totalmente a ideia do jogo de pulverizar ideologias em troca de ter coisas, de poder descartar objetos sem história facilmente. Essa era a única forma de sustentar, para poucos, um sistema que sacrifica muitos.

E que melhor forma de executar este “plano” do que retirar qualquer coisa as quais as pessoas podem se apegar? Vale aqui a máxima revista no V de Vingança: “você pode matar um homem, mas não um ideal!”

Se matar o ideal, entretanto, morrem todos os homens…

A crise de sentido atual, portanto, é uma de nossas descobertas, alimentada como tal para que acreditemos nela, ou uma realidade?

Remember remember…

A imagem da máscara de papel com a flor é daqui

Publicado por

RDS

Jornalista, escritor, metido a poeta e comediante. Adorador de filmes e livros, quem sabe um filósofo desocupado. Romântico incorrigível. Um menino que começou a ter barba. Filho de italianos, mas brasileiro. Emotivo, sarcástico e crítico, mas só às vezes.

4 comentários em “Morre um ideal – “Remember, remember…”

  1. Basicamente, depois da queda do muro de Berlim e do fracasso dos países comunistas do leste europeu, uma nova face da ideologia se tornou hegemônica, forçando a aceitação do capitalismo como único via, como o vitorioso, o lançamento do livro de Fukuyama é um bom exemplo disso.

    Entramos, com esse acontecimento, em uma era de política sem política, onde a direita e a esquerda estão em prol de um capitalismo com face mais humana (já que a hipóstese socialista foi descartada).

    É por isso que vivemos na era considerada pós-moderna, pós-política, pós-ideológica (o que é uma mentira, pois, no sentido marxista da palavra, estamos mergulhados em ideologia).

    Bascicamente, naõ temos que acreditar nisso, pois é uma mentira, as crises constantes já provam que Fukuyama estava errado, assim como as guerras mundiais provaram que Comte estava enganado.

  2. Boa Renan!
    Enquanto a ideia lá fora é pensar além do hipercapitalismo, aqui temos passeatas contra os “escândalos de corrupção’, sempre pautadas por uma mídia que ignora completamente os #occupy que estão acontecendo pelo mundo e abraçam docilmente as ideias neoliberaris decadentes que estão afundando a Europa e os EUA. Quem vê, pensa que está tudo bem por aqui, que é só punirmos políticos corruptos que tudo se resolve. Se não tiver corrupção (ou se eu não souber que há corrupção) tudo bem se tudo continuar como está. Economia e educação são assuntos que não interessam a ninguém. Ver passeata levando capa da Veja como bandeira de protesto mostra o quanto estamos longe de uma mudança real. Resta mais uma vez esperar algo de fora.

  3. É f*** (pra não ficar inserindo palavrão no blog alheio)! Quando li a frase que você usou, isso me fez pensar que a partir deste momento ela já não retrata o que deveria. Explico, e talvez justifique alguns movimentos ou a falta deles: quando acreditei que uma banda, uma ideia, uma p***a qualquer, mexa em algo inominável, para que continue assim não deveria nem mencioná-la, assim é da ordem do Real (conceito lacaniano), ou fica na vermelhidão do vermelho (conceito santaeliano). Quando paro pra pensar no que está acontecendo. Quando repenso. E, pior… escrevo, pois sabemos o “trampo” que dá passar uma ideia para o papel, o que deveria ficar no campo das coisas, toma palavras, assume formas, deixa de ser coisa. Lendo o que escreveu sobre os movimentos “oba-oba”, faz pensar que enquanto oba-oba é bem provável que estes não ganhem força, pois como não foram escritos (ou seja, pensados, repensados e transmitidos) não assumiram forma. Perdem em sentido, ganham em quantidades. Lógica do consumo! Mas, será que estas palavras são suficientes para explicar o Mercado? Ou ainda, será que o Mercado é suficiente para explicar estas palavras? É interessante que muitos movimentos atuais são organizados através das redes sociais (vide churrascão em Higienópolis). Ora, não estamos vendo as instituições tradicionais fracassarem enquanto instituições (família, religião, estado…)? E o que pode vir a seguir???
    Algumas coisas devem ser sentidas e só sentidas sem a necessidade de se dar um nome para isso. Outras já deveriam assumir formas mais estabelecidas, assim podem ganhar não só em quantidade mas também em força e ideais. O problema é que está tudo misturado…
    Vou parafrasear Humberto Gessinger em Surfando Karmas & DNA: “na falta do que fazer, inventei a minha liberdade”

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