Quem é de família italiana ou pelo menos convive neste ambiente familiar, sabe como é. As pessoas comem bastante, todos falam alto, dramatizam qualquer história, se um copo cai no chão e quebra parece o fim do mundo e, se uma criança tropeça, provavelmente, os gritos dos adultos vão assustá-la mais que o próprio tombo.
O ambiente é sempre alegre, ou pelo menos agitado. As músicas são altas e barulhentas, as gargalhadas fortes e a preocupação é grande. Algo muito característico é o papel das mammas, que reforçam essa coisa do cuidado com tudo e, por vezes, assumem o papel de líderes da família. Conscientes de todas as vitaminas e proteínas que seus filhos precisam, insistem para que você sempre coma e, se já tiver almoçado, que coma um pouco mais – mangia che te fa bene!
Há quem diga que os italianos abandonam qualquer discussão, inclusive política, por comida e, ao contrário do Brasil, nem sempre as coisas acabam em pizza, mas sim num belo spaghetti com almôndegas coberto com muito queijo ralado. Eu não acredito nisso. Sou filho de italiano e adoro uma discussão… mas não posso negar o resto, especialmente o queijo.
Às vezes acho que sou capaz de comer tudo com queijo. De salada até café da manhã, o queijo tem de estar presente, é como um símbolo. Lembro de uma vez que, ao conhecer uma garota que hoje é uma grande amiga, perguntei qual era o seu background familiar e quando fui dizer o meu ela me interrompeu e disse, “italiano, tá na cara!”. Achei curioso.
Até o momento ela só sabia o meu primeiro nome, que puxa mais para o francês, na verdade, e eu tenho absoluta certeza de que não tinha nenhum tipo de signo vestual que pudesse me entregar nesse sentido. Provavelmente ela sacou pela cadência vocal, altura da fala ou pelas mãos se movendo. Essa mesma menina, num momento distinto, olhou-me devorando algum salgado da lanchonete da faculdade e se impressionou. Quando perguntei qual era a questão, ela disse: “você come com gosto, dá até vontade de comer também”. Não lembro o que tinha no salgado, mas com certeza não faltava queijo.
Esse é um ingrediente muito especial na culinária italiana e que de certa forma traduz toda a cultura desse povo. Parece absurdo dizer que apenas um ingrediente mostra tanta coisa, especialmente porque não falo aqui da história do preparo do produto na nostra terra, ou de como ele influenciou economicamente o país, mas sim da sua utilização, da sua representação simbólica direta e a atuação dessa gente, que amo e da qual faço parte.
A relação não poderia ser mais simples: italianos amam queijo, queijo é um dos derivados do leite, logo, italianos amam leite, ou melhor, o que ele representa no inconsciente coletivo.
O primeiro leite com o qual temos contato é o materno, e ele instaura aí uma crescente volta ao passado no sentido de que, quando crescemos, teoricamente, podemos extrair os nutrientes encontrados nesse alimento de outros locais e não precisamos mais do leite em si. Algumas pesquisas já chegaram a mostrar, inclusive, que, com o passar dos anos, a taxa de lactase (enzima que digere a lactose) diminui muito no ser humano adulto. Talvez acompanhando uma transformação natural de que paramos de nos alimentar apenas de leite e incluímos outros elementos à nossa dieta. Mas ainda assim mantemos o leite, ou melhor, o queijo no caso dos italianos.
O mamar da criança é basicamente a única função que já vem “instalada” em nós. Logo, é a primeira maneira que temos de nos relacionar com o mundo e, em especial, com a mãe, que nos ensinará muitas outras. Muitos já ouviram falar das três fases descritas por Freud: oral, anal e fálica.
Na minha visão, nos italianos, a fase oral tende a predominar durante toda a vida.
Desde que a fase anal instaura uma relação de controle e a fálica denota um momento mais evoluído em relação ao prazer, a fase oral é aquela marcada pela intensidade, pelo exagero e pelo querer mais e mais e, quem sabe, momento em que o bebê também se sente mais completo.
Se saímos de um ventre e nada conhecemos, as primeiras sensações são as mais intensas. O mal estar de ser retirado da nossa casa quente e úmida é logo embatido a um mundo cruel, cheio de luzes, gente nos pegando e tudo o mais. Entretanto, logo encontramos um seio e, incrivelmente, essa sensação de sorver nos acalma, faz calar a boca e inaugura uma relação com o mundo. De certa forma, pode-se dizer que a primeira maneira pela qual absorvemos o mundo, o externo, o umwelt (em contraposição ao innenwelt), é por meio desse mamar. É ali que não só sentimos algo como tomamos posse e jogamos para dentro de nós o mundo.
A sensação primeira é a mais forte. É velha a concepção de que a primeira boa refeição, a primeira vez que se usa drogas ou que se pula de uma grande altura é simplesmente aquela que instaura em nós a falta, porque nenhuma outra será como aquela, tão intensa. Mas isso não nos impede de continuar buscando.
Logo a fase oral (que tem diversas características) se mostra pela intensidade, exagero, busca por mais e, aprendizado em como utilizar a garganta não só para beber o leite como para também pedir mais, nem que seja aos berros.
Os italianos, dessa forma, continuam apegados à fase oral durante toda a vida. Pela intensidade de seus sentimentos e amores, pela gritaria e barulheira, pelo apego à mãe, pela teatralidade (afinal o choro de quase morte que um bebê realiza quando tem fome é mais teatral que real, por assim dizer), etc., e tudo isso se reflete, e se resume, naquele queijo ralado em cima do macarrão, a absorção eterna do mundo.
Mesmo quando sublimam suas pulsões, os italianos tendem a ser muito “fortes”. Sua arte atraiu e conquistou, e ainda conquista, porque mexe com algo inicial na gente, uma das bases. E tudo tem de ser dramatizado.
Dante Alighieri, por exemplo, se vingou de diversos inimigos no texto da Divina Comédia (especialmente na parte Inferno), aproveitou para se exaltar, enfrentar perigos e amar Beatriz de forma pura e perfeita, como nunca conseguiu na realidade, especialmente por questões políticas. E devia adorar queijo. Uma de suas maiores dores (e causa de tantas outras) foi o exílio que sofreu da cidade de Florença, que tanto amava. Como um filho afastado da mãe, só devia lhe restar o queijo como lembrança do leite e apego materno, mas isso já é especulação.
Os italianos podem não ser os mestres do planejamento ou da organização. É um povo que se move mais por impulso e emoção que outra coisa. Perde na política, ganha na arte. Assim, carregam a característica de nunca parecerem ter realmente desmamado e isso se mostra em tudo o que fazem, em toda sua cultura.
Não citei por acaso a figura das mães italianas. Elas são uma das fortes bases desse convívio familiar e diria até que a razão de ser das máfias. Gay Talese, em seu livro Fama e Anonimato, no perfil de Frank Sinatra, mostra como a mãe do blue eyes articulou muita coisa para que seu marido se tornasse bombeiro e recebesse outras promoções. Ela tinha influência política no bairro e coisas assim, típico complô italiano.
Quando pensamos na trilogia do Poderoso Chefão, por exemplo, vem logo à cabeça uma sociedade patriarcal, e não deixa de ser, mas as mulheres são essenciais. O “respeito” que Michael demonstra no filme é exemplo disso. Não só durante seus encontros, mas ele elegantemente escolhe não matar seu irmão Fredo antes que sua mãe faleça. Você não tem medo de matar seu irmão, mas tem medo do que sua mãe possa dizer a respeito… vai que ela corta o leite, ou o queijo, no caso.
A figura mais curiosa dessas obras, no entanto, é a irmã de Michael, que assume um papel de “cuidadora” do irmão mais novo que virou mafioso meio sem querer porque o irmão Sonny caiu numa emboscada. Depois da morte da mãe, é “Connie” que assume o papel de mamma.
Imagino que isso possa acontecer em outras famílias e culturas por diversos motivos, mas, normalmente, ao envelhecer, as mulheres italianas passam a dominar a cena. Os homens continuam como o símbolo de poder da família, mas elas é que mandam, seja por sussurros ao pé do ouvido, ou por intrigas abertas.
Não é difícil vermos o nonno ser cuidado quase como um bebê pela sua mulher. Ela separa suas roupas, fala o horário de seus remédios, o que pode ou não comer e diz sempre para não exagerar no vinho. Pode ser que seja uma característica tipicamente feminina, mas isso só reforça a ideia de que o desmame nunca ocorreu, apenas se transferiu de objeto. Da mãe para a mulher.
É comum também a reclamação de que as mulheres que se casam com italianos (sendo ou não da mesma cultura) tendem a se sentir a segunda na escala até que a mãe do marido morra, aí sim elas se tornam as dominantes (quem sabe venha daí o ódio inaugural às sogras).
Como uma grande galinha (no bom sentido) querendo proteger todos os seus pintinhos, a mamma ou futura nonna, tende a agregar todos ao seu redor e a família passa a ser o mais importante, porque, em primeira instância, todos ali, de uma maneira ou de outra, vieram dela e dela devem continuar dependendo. Com muita comida e queijo, a grande mãe amamenta, até o fim de seus dias, a sua prole, não importando o tamanho que tenha.
Tenho para mim que os italianos só não são o povo recorde em formação de psicóticos (simplificando demais, um não descolamento do indivíduo de sua figura materna) exatamente porque nunca saíram da fase oral.
O raciocínio é esse: se nunca saíram da fase oral e vivem tudo com intensidade única e continuam buscando a primeira sensação deliciosa em tudo, os italianos são também grandes românticos, querendo viver paixões em seu ápice. Assim, não só os relacionamentos, mas as relações amorosas, necessitariam de repetições intensas em nome dessa busca, o que culmina, se dúvida, em grande prole. É a enorme família e a impossibilidade de ter um único filho só para si que exerce na mamma esse descolamento necessário à criação de um neurótico.
Na vinda de tantos outros filhos, elas são obrigadas a “largar o doce”; e eles, em determinado ponto, a dividir a teta (“me passe o queijo, por favor”). Como a explosão demográfica já passou, não me espantaria se as formas de controle de natalidade influenciassem no aumento de psicóticos. Mas isso provavelmente não deve ocorrer, porque temos o mercado de trabalho, a internet e os novos celulares chamando as mamães. Sem falar nas academias, dietas, revistas, baladas e etc.
Eu discorreria mais sobre esse assunto e até daria para entender um viés político disso, mas não posso…
Acabou de chegar meu spaghetti com almôndegas!
Primeira imagem é do blog Receitas Práticas. A segunda é do Zé do Queijo. A terceira é do poderoso Chefão, no casamento da Connie e peguei aqui.
Um treino de como aplicar Semiótica Psicanalítica nos sintomas da cultura. Esclarecedor e com fácil acesso intelectual. Parabéns Renan!
Parabéns, teu texto está simples mas muito profundo. Beijos!
Parabens,seu texto faz a gente viajar hoje conheci a Italia
amanha posso morrer.
beijos Shirley
gostei muito desse trecho “…é por meio desse mamar. É ali que não só sentimos algo como tomamos posse e jogamos para dentro de nós o mundo.” – fazendo um paralelo da cultura italiana, posso afirmar que a judaica também percorre esse mesmo universo mais oral. beijos