Os 300 de Espart(ilho)

O texto foi escrito em 2007

 

300 Eles acordaram cedo, pegaram seus escudos, lanças e espadas e marcharam rumo ao norte. Marcharam pela liberdade, por suas mulheres e filhos, pela sobrevivência.

Eles acordam cedo todos os dias, pegam seus casacos, guarda-chuvas e mochilas e andam até o ponto de ônibus, vindos da Zona Norte. Andaram pela sobrevivência de suas mulheres e filhos, pela liberdade de tomar uma cerveja com os amigos no último dia da semana.

Retrato familiar? Com algumas pequenas adaptações? Acordei atrasado e já fui tomar meu café irritado, não por dormir demais, mas pensando no fato de que me atrasaria ainda mais porque meu irmão entrou no chuveiro na minha frente e demoraria anos. Atraso de cinco minutos no transporte público de São Paulo significa uma hora a mais de trânsito, no mínimo.

Os Espartanos do filme acordaram pra marchar rumo à morte, rumo ao norte, para se apertarem nas rochas estreitas a fim de conterem o avanço dos persas.

Os paulistanos acordaram cedo para se apertarem rumo ao centro, na selva de pedra, para conter o avanço das dívidas e do nome no SPC. A diferença é que os Espartanos estavam felizes ao morrerem com glória. E nós? Tão diferentes?

Entrei na Lotação com um braço e uma perna apenas, geralmente os primeiros 500 metros são um tipo de teste, para provar seu valor e constatar se você é realmente merecedor de se enfiar num espaço minúsculo com mais 299 pessoas, tirando as mochilas usadas de escudos e os cotovelos como lanças. Câimbra nem pensar, é morte na certa, seria uma falha na Falange Espartilhana.

Ao contrário do que esperava, não peguei o trânsito costumeiro do atraso (se é que sair uma hora antes de casa para percorrer cerca de 15 quilômetros é atraso, acho que a pé eu consigo) e, de repente, me peguei sorrindo por debaixo dum “sovaco” enquanto olhava as ruas com uma quantidade de carros que, incrivelmente, conseguiam se locomover.

Sorri, fiquei feliz. Tínhamos 300 pessoas acumuladas dentro duma lata com rodas, suando como um único organismo e respirando bem pouco, indo para a Fábrica (quem lembra da música da Legião Urbana?) em busca de sobrevivência, com as costelas se misturando aos pulmões e cotovelos de outrem, 300 pessoas como a barriga e o busto de uma pobre garota sufocada pelo espartilho e, mesmo assim, sorri por não ter “muito trânsito”. Enquanto um motorista nos guiava louca e arriscadamente, como o rei Leônidas.

“Quero trabalho honesto, em vez de escravidão”, é o que diz a música, e ainda, “Deve haver algum lugar onde o mais forte não consegue escravizar quem não tem chance”. Mais que um trabalho honesto, quero maneiras de chegar até ele, de chegar até a Fábrica. Se achamos absurda a maneira como os Espartanos tratavam seus filhos, fazendo-os aprender a sobreviver, roubar e matar, e que se submeter às vontades de um rei, prontos para morrer pela pátria, é inaceitável… bem, olhem nossas próprias vidas em qualquer lugar do planeta.

Particularmente, prefiro um rei. Se você está com problemas, se tem reclamações, se quer se vingar do desprezo do Estado pelos seus semelhantes, quem você deve atacar? Talvez não no sentido físico da coisa, mas como recorrer? Vão dizer que faltam possibilidades e que não existem meios para tanto. Que não se pode culpar uma pessoa por um problema do sistema.

Se você bate na atendente mal-educada, está errado, se reclama com o gerente, ele apenas coordena o pessoal, se fala para o presidente da República, ele diz que não sabia e se torna vítima, não há escapatória.

Concentrar os poderes numa só pessoa pode ser arriscado, arbitrário, mas deixar o “sistema” agir é pulverizar responsabilidades e ver que não há ninguém culpado, e no entanto, todos são.

Sou a favor dos reis, é muito bonito e me anima quando vejo estes filmes hollywoodianos que mostram apenas o lado digno e de honra destes governantes, fora que encontrar um inimigo comum, como os persas, sempre resolve para juntar pessoas numa mesma causa. Sejam os persas, comunistas, negros, judeus, homossexuais ou os motoboys (?).

Com um rei as coisas ficam mais fáceis, se algo está errado você o culpa ou faz com que ele mate alguém (nem que seja você), fora que em grandes crises você sempre pode decapitá-lo após invadir o castelo. Claro que vai dar todo aquele problema de sucessão, quem sobe ao trono, quem não sobe etc. Mas o importante é que sempre exista um sucessor para decapitar em casos de emergência.

Inimigos comuns, lugares comuns, não parecemos ter evoluído tanto desde 480 a.C. Mas com certeza pensamos que sim. Continuamos indo à guerra, continuamos indo à Fábrica, continuamos sendo a Fábrica de guerra contínua e lutamos pela sobrevivência com um sorriso frente à morte ou uma rua com dez minutos a menos de trânsito. A vitória é sempre temporária.

Publicado por

RDS

Jornalista, escritor, metido a poeta e comediante. Adorador de filmes e livros, quem sabe um filósofo desocupado. Romântico incorrigível. Um menino que começou a ter barba. Filho de italianos, mas brasileiro. Emotivo, sarcástico e crítico, mas só às vezes.

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